sábado, 7 de fevereiro de 2015

A tragédia silenciosa do cineasta Eduardo Coutinho

Tomaz Silva/Agência Brasil

O TERROR SILENCIOSO

A história de um cineasta famoso, 
um filho doente mental e uma tragédia


Por André Petry



Quando atendeu o telefone, Pedro Coutinho foi surpreendido pela voz aterrorizada de sua mãe:

— Seu irmão matou seu pai! Está tentando me matar! Me ajude, por favor, me ajude!

A notícia brutal afogou-o numa torrente de adrenalina. Atônito, Pedro pediu à mãe que repetisse o que dissera. Em prantos, ela tornou a descrever o horror e implorar socorro. Eram pouco mais de 11 da manhã de domingo, 2 de fevereiro de 2014. Pedro passava o fim de semana com a filha de 13 anos no seu apartamento no centro de Petrópolis. Avisou à mãe que desceria imediatamente a serra em direção ao Rio de Janeiro e desligou, mas continuava incrédulo. Afinal, seu irmão, Daniel, 41 anos, um ano mais novo, morou quase toda a vida com os pais e nunca fora violento com eles. Agarrado a esse histórico pacífico, Pedro pensou que a mãe pudesse estar delirando. Temia ligar de volta para ela e correr o risco de complicar as coisas com um telefonema inoportuno. Fez uma ligação para o cineasta Eduardo Escorel, vizinho de bairro de seus pais, e pediu-lhe que fosse até o apartamento deles conferir o que se passava. Do Leblon, Escorel tomou um táxi na mesma hora. Ao chegar ao número 826 da Avenida Lineu de Paula Machado, na Lagoa, a paisagem humana em frente ao prédio, com uma aglomeração incomum de bombeiros e policiais, já denunciava a desordem da morte. Escorel cumpriu então o penoso dever de ligar para Pedro:

— Sinto muito, Pedro. As notícias são ruins — disse ele, desviando-se do açoite das palavras exatas.

— Meu pai morreu mesmo? — foi a angustiada pergunta de Pedro.

Aos 80 anos, o consagrado cineasta Eduardo Coutinho, diretor do premiado Cabra Marcado para Morrer, fora assassinado pelo próprio filho com duas facadas na barriga, que provocaram uma hemorragia letal. Figura única no cinema nacional, ele tinha uma cabeleira branca prestes a levantar voo, uma barba de anteontem, uma magreza de faquir e um olhar suplicante, quase desesperado, atrás de um grande par de óculos. Nos últimos tempos, andava doente e frágil, embora continuasse extraordinariamente inventivo. Havia dois anos, tivera uma pneumonia. Seis meses depois, outra, ainda mais grave. Tinha um enfisema pulmonar, herança de décadas de um tabagismo feroz, e dera para andar tateando pelas paredes e caindo a toda hora, em casa e na rua.

No apartamento da Lagoa, onde morava havia quatro décadas, Coutinho vivia com o filho Daniel e a mulher, Maria das Dores, a Dorinha, dezoito anos mais jovem. Por escassez de dinheiro ou de interesse, os estragos do tempo foram se perpetuan­do no apartamento, que lentamente adquiriu um aspecto de museu decadente. Nunca fora pintado, o assoalho estava gasto, havia infiltrações nas janelas, mas o que tornava o ar irrespirável ali dentro eram as demandas alheias. Encaramujado em si mesmo, Daniel não saía do quarto, mas sua presença imperava em todo o apartamento, com a exigência de que todos fizessem um silêncio de ferro. Os pais, indagados a que hora iam sair, tinham de dar uma resposta cirúrgica: “Às 3 horas”. Quem se debulhasse em imprecisões prolixas — “Acho que lá pelas 3 horas, talvez um pouco antes...” — era bruscamente intimado a calar-se para não ferir sua sensibilidade auditiva incomum. Um dia, Coutinho, a mulher e a cunhada Rita, reunidos no escritório, riram alto de alguma coisa. Daniel enfiou a cara na porta, espiou o grupo ostensivamente e saiu. Em seguida, ouviu-se um estrondo. Ele espatifara um vaso de cristal no chão da sala. Assustada, a mãe perguntou por que fizera aquilo. Recebeu uma resposta inesquecível: o esgar de um sorriso.

Completando a aflição da vida familiar, Coutinho e a mulher vergavam sob o peso de um casamento corroído e impregnado de acusações que no passado haviam servido para ferir e agora apenas requentavam um rancor cansado. Mesmo depois das separações conjugais, durante as quais buscava abrigo na casa de um amigo, Coutinho acabava sempre voltando para casa. Afinal, era a sua casa. Mas a asfixia doméstica o empurrava para a rua. Nos dias úteis, fugia para sua sala no Centro de Criação de Imagem Popular, que ajudara a fundar nos anos 80. Não usava celular, não respondia a e-mails, não escrevia em computador. “Tenho duas Olivetti, nenhuma funciona direito”, dizia, com seu imperturbável sotaque paulistano que nem décadas de Rio de Janeiro conseguiram amansar. Passava os dias burilando novas ideias. Estava fazendo um novo filme, com o título provisório de Palavras, centrado em conversas com adolescentes. Nos fins de semana, distraía-se por horas a uma mesa na calçada da livraria Ponte de Tábuas, perto de sua casa. Era seu outro refúgio. Sentado ao ar livre, podia fumar seus cigarros intermináveis e recebia recados como se estivesse em seu escritório. Em junho de 2013, oito meses antes de sua morte, a livraria fechou, e Coutinho perdeu esse recanto de paz. Um dia, ao ser perguntado por que não ficava em casa nas horas de ócio, deu uma resposta inequívoca como um trovão: “É insuportável”.


Estavam extraviados no passado aqueles dias inigualáveis de 1970 quando Coutinho se apaixonou por sua então futura mulher. Filmava Faustão, o drama shakespeariano, ambientado no agreste de Pernambuco. As locações ficavam em Brejo da Madre de Deus, perto de Caruaru. Dorinha era figurante no filme, não tinha fala, mas, no frescor de seus 19 anos, capturou a atenção de Coutinho. Ela, moça do interior, de família pobre, com estudos até a 3ª série, também se encantou com o diretor de 37 anos, com sua cabeleira negra e a barba muçulmana, que já começava a mostrar os primeiros fios brancos. Concluídas as filmagens, Coutinho voltou para casa e mandou as passagens para Dorinha juntar-se a ele no Rio. Ela foi. Em 1971, tiveram o primeiro filho, Pedro. Foi uma alegria só. Às portas dos 40 anos, Coutinho realizara o sonho de ser pai. O bebê tinha 3 meses quando Dorinha voltou a engravidar. Dessa vez sobreveio um drama que um dia ressuscitaria: a toxoplasmose.

O diagnóstico saiu logo no início da gravidez. Transmitida através das fezes do gato, a toxoplasmose é quase inofensiva para pessoas saudáveis, mas é grave para gestantes. O parasita — Toxoplasma gondii — pode infectar a placenta e o feto, causando danos neurológicos severos, como atraso no desenvolvimento mental e motor, paralisia cerebral e epilepsia. O caso de Dorinha era tão sério que o médico sugeriu que o casal discutisse a interrupção da gravidez. Com um recém-nascido no colo e 20 anos de idade, Dorinha desoriento­u-se com a notícia de uma infecção grave da qual nunca ouvira falar. Coutinho tomou o assunto para si e resolveu manter a gravidez, apesar dos riscos. Com sua brava decisão, fez nascer o filho que um dia o mataria e cujo risco de suicídio seria um de seus pesadelos mais latentes.

“Foi uma dificuldade muito grande carregar essa gravidez. Cheguei a ter medo”, disse Dorinha, no depoimento que prestou à Justiça, na dilacerante condição de testemunha de acusação contra o próprio filho. Oito meses depois do diagnóstico, com saúde aparentemente perfeita, Daniel nasceu no mesmo dia que Pedro, 3 de agosto. O drama da toxoplasmose ficou no passado, talvez por discrição, talvez por segredo. Pedro só soube da doença depois do crime, quando a mãe lhe contou pela primeira vez as circunstâncias difíceis da gestação do irmão. É provável que nem Daniel soubesse. Sua mãe, antes de começar o depoimento à Justiça, pediu que Daniel, algemado no banco dos réus, fosse retirado da sala. Com a impaciência dos burocratas, o juiz Fábio Uchôa indagou por que Dorinha não queria “depor na frente do acusado”. Desprotegida na amplidão do tribunal, ela encolheu os ombros e pendurou uma reticência num fiapo de voz trêmula: “É muito difícil para mim falar de um filho…” Daniel foi retirado.

Em circunstâncias felizes, a coincidência do nascimento no mesmo dia pode sublinhar o afeto entre irmãos, presenteando-os com mais um laço fraternal. No caso de Pedro e Daniel, só ajudou a condimentar uma hostilidade crescente e mútua. Na infância, tudo funcionava como uma sinfonia. Os meninos comemoravam o aniversário numa única festa, estudavam na mesma escola, o prestigiado Colégio Andrews, eram bons alunos e frequentavam o mesmo clube, o Piraquê, pertinho de casa. No entanto, eram o oposto em tudo. Nas recordações da mãe, Pedro era carinhoso, cordato, responsável. “Ele gostava de brincar comigo, pedia meu colo”, diz. Daniel era descuidado, meio agressivo, imprevisível. “A gente nunca sabia como ele ia reagir.” Os meninos começaram a brigar. No início, eram brigas infantis. Com o tempo, chegaram aos socos e pontapés, para desespero da mãe, que implorava por calma, mas carecia da força e da autoridade para impor sua ordem de paz. No aniversário de 12 e 13 anos, os garotos vestiram a camiseta do Flamengo, cantaram Parabéns, apagaram as velas, e nunca mais festejaram a data juntos. De repente, sem um desentendimento terminal, uma desavença insuperável, pararam de brigar e se afastaram. Pedro diz: “Acho que nos demos conta de que as brigas estavam ficando cada vez mais sérias. Então, simplesmente paramos de brigar e cada um foi para o seu lado”.

Os dois ainda passaram mais de dez anos dividindo o mesmo quarto e trocando só as palavras indispensáveis. No fim da adolescência, as diferenças aprofundaram o fosso entre os irmãos. Pedro acordava cedo e perturbava Daniel com os barulhos matinais. Daniel deitava-se tarde e incomodava o sono noturno do irmão. Daniel fumava, Pedro nunca acendera um cigarro. Daniel não trabalhava, começara a beber e envolver-se com drogas, primeiro maconha, depois cocaína. Pedro tinha começado a trabalhar cedo, nunca consumira drogas nem era de beber. Daniel passara a levar a namorada para casa, trancava-se no quarto com ela e impedia Pedro de entrar. Com o salário de assessor do Ministério Público Federal, seu primeiro emprego, Pedro comprou sua paz pagando ele mesmo uma reforma das dependências de empregada, onde Daniel e a garota passaram a ter a privacidade desejada sem desalojá-lo.

Coutinho testemunhou o afastamento dos filhos com olhos distantes. Na época, vivia o auge de Cabra Marcado para Morrer, lançado em 1984. O filme tornou-se um marco na história do cinema documental do Brasil e arrebatou doze prêmios numa luminosa trajetória no exterior. Com o sucesso, Coutinho ganhou impulso para alçar um voo ambicioso. Pediu demissão do Globo Repórter, da Rede Globo, onde trabalhava havia dez anos, e apostou na carreira de cineasta. As constantes viagens internacionais e a participação no júri de festivais de cinema afastavam-no do cotidiano familiar. Dorinha encarregava-se dos meninos, trovejava seu ciúme diante das longas ausências do marido e nunca lhe perdoou a renúncia à estabilidade financeira de um emprego na Globo, cobrança que manteve em carne viva.

A aposta de Coutinho não rendera o dinheiro esperado, mas não lhe faltava trabalho. Quando recebia algum pagamento, anunciava à família: “Temos dinheiro para viver mais quatro meses”. Em vez de trazer alívio, o aviso atiçava a insegurança financeira de Dorinha e acionava a cachoeira de lamentações. Coutinho estava percorrendo um caminho único no cinema nacional. No começo, carecia de coragem para enfrentar a grandeza de Cabra, e escapava de si mesmo fazendo o que ele próprio chamou de “filmezinhos”, até que, com o tempo, encontrou sua identidade no cinema, consolidando uma carreira de diretor e roteirista que chegou ao fim com sete filmes de ficção, 22 documentários, incontáveis prêmios e uma homenagem póstuma na festa do Oscar de 2014, quando seu nome foi incluído na lista das celebridades falecidas no ano — logo ele que detestava a autopromoção e as futilidades da publicidade. Com irresistível humor ranzinza, abatia no voo qualquer ameaça de o tratarem como “sumidade” do cinema.

Em 1998, quando Coutinho começava as pesquisas para filmar Santo Forte, documentário que levou uma braçada de prêmios e marcou seu reencontro com a consagração, Pedro deixou a casa dos pais. Tinha 26 anos. Ganhara um posto de promotor de Justiça na cidadezinha de Sapucaia, a 150 quilômetros do Rio, na divisa com Minas Gerais, onde conheceu Fernanda, sua primeira mulher e mãe de sua filha. O afastamento físico entre ele e Daniel, somado ao passar do tempo, essa combinação que recompõe tantas relações familiares moídas no convívio diário, operou o milagre inverso: separou os irmãos para sempre. Já faz trinta anos que se tratam com a frieza dos estranhos. “Não existe afeto entre nós”, diz Pedro. Quando fala do irmão, ele conjuga o verbo no passado. Até hoje, não o visitou no manicômio judicial de Bangu, onde Daniel está preso à espera de julgamento. “Não me sinto preparado para visitá-lo.”


Na adolescência, Daniel não era um líder nem o terror da vizinhança ou das meninas, mas era um pouco de tudo isso. Tinha alguma força física, o impulso natural para aventuras e uma estampa, corrigida por uma plástica no nariz, que atraía as garotas, formando um conjunto de atributos que se delatavam no apelido que ganhou: Dani Boy. “Nessa época, acho que Daniel era feliz”, diz Pedro. Do fim da adolescência em diante, algo esquisito começou a acontecer, e Daniel passou a ser cada vez menos Dani Boy. Por volta dos 18 anos, sua turma do Clube Piraquê entrou numa pancadaria com um grupo rival. Deu polícia, os pais foram chamados, e Coutinho tirou o filho do clube para mantê-lo longe de confusões. O círculo social de Daniel estreitou-se. Mais tarde, num vendaval de fatalidades, perdeu três amigos em seis meses. Um morreu em razão de um defeito congênito no coração. Outro, num acidente de carro. O terceiro foi assassinado numa disputa por drogas. Na época, sacudido pela sucessão de mortes, Daniel dizia: “Não quero mais ter amigos”. Sua vida social ficou ainda mais reduzida.

Na faculdade de comunicação social, começou a ter problemas acadêmicos, ele que sempre fora um bom aluno. Levou seis anos para concluir o curso de jornalismo. Não teve amigos nem namoradas. Formado, quis trabalhar nos filmes do pai, pelos quais nunca se interessara antes. Participou de Babilônia 2000, no Morro do Chapéu Mangueira, onde Coutinho colocou cinco equipes de filmagem na virada de 31 de dezembro de 1999. Não deu certo. Daniel era relapso, distraía-se demais, desagregava a equipe. O pai decidiu que não podia mantê-lo. Daniel tentou ainda trabalhar como assessor do então candidato a deputado estadual Roberto Dinamite, o ex-craque do Vasco. Também não funcionou, e encerrou-se aí sua última conexão social.

Em 2006, cansado das discussões domésticas com Daniel, Coutinho mandou-o para a casa da família em Mauá, a 65 quilômetros do Rio. “Eduardo não queria mais ficar no mesmo ambiente que ele”, disse Rita, irmã de Dorinha, no seu depoimento à polícia. Segundo ela, os parentes achavam que a impertinência e o ócio de Daniel eram “coisas de garoto mimado”. No início, Daniel sentiu-se bem em Mauá. Depois, desenvolveu um medo de ficar sozinho. Em menos de dois anos, voltou para a casa dos pais no Rio, encarcerou-se nas próprias sombras no quarto de empregada e nunca mais soube o que era vida social. Atormentada com o isolamento do filho, Dorinha culpava o marido por não lhe dar um emprego. A essa altura, já era visível que havia algo mais complicado do que um “garoto mimado”. Daniel tinha 34 anos. Coutinho não conseguia abrir os olhos da mulher. “Ele não tem condições de trabalhar”, dizia. “Ele precisa se tratar.” Mas ninguém sabia do quê.

Em casa, o ambiente se deteriorava num ar saturado de tensão. Coutinho tinha medo de que o filho, por qualquer razão, se suicidasse de repente. Daniel mal saía do quarto. Lia cinco, seis livros ao mesmo tempo, um pedaço de cada um. Deitava-se cedíssimo, por volta das 18 horas, e às 5 da manhã já estava acordado. Temia ser internado, ainda que ninguém soubesse se era uma medida necessária ou recomendável, e sempre pedia ao pai que não o mandasse para um hospital. Nos últimos tempos, Dorinha vivia um inferno particular. Protegia Daniel como uma leoa, como fez a vida toda, mas criou um medo do próprio filho, dentro da própria casa. Na definição cortante de Pedro, a rotina no apartamento “era um terror silencioso”.

A notícia de que Daniel era pacífico talvez esconda uma realidade mais áspera. Em seu depoimento à polícia, quatro dias depois do crime, Rita, que sempre visitava Dorinha, disse que por três vezes desconfiou de que Daniel a tivesse agredido. Nessas ocasiões, Rita encontrou Dorinha “chorando e com hematomas”, mas ela sempre negava ter sido atacada pelo filho. Rita suspeita que a irmã ocultava as agressões para proteger Daniel. Pelo menos uma vez, Rita tratou de sua desconfiança com Coutinho. Ele ficou sem saber o que fazer. Achava que, se Daniel fosse internado, poderia ficar pior do que estava. Além do mais, ele “ficaria com muita raiva de seus pais”. Tragicamente, optou-se por deixar as coisas como estavam.

Os últimos dias foram particularmente angustiantes. Daniel pediu ao pai que levasse uma prostituta para casa, para aliviá-lo das urgências agravadas pelo seu longo isolamento. Uma ou duas semanas antes do crime, disse à mãe que queria se matar. Assustada com a confidência do suicídio, a mãe fez o que pôde para demovê-lo da ideia. Alegou que sua presença era fundamental para ajudá-la a cuidar de Coutinho, cuja saúde vinha fraquejando. Numa lógica delirante, Daniel concluiu, como ele próprio contou mais tarde, que a melhor forma de cuidar dos pais era matá-­los antes de matar a si mesmo. Era intolerável viver como vivia. Dormia com uma faca ao seu lado para defender-se de agressões imaginárias no meio da noite. Ouvia vozes que lhe ordenavam o suicídio. Tinha certeza de que era a encarnação do demônio, e essa condição especial provocava inveja e rancor “das vozes”.

Na véspera do crime, Daniel passou o dia “fumando, bebendo água e falando sozinho”, segundo contou à polícia. Estranhamente, esse depoimento jamais chegou aos autos do processo. Foi gravado em vídeo em 6 de fevereiro, quatro dias depois do crime. Tem apenas dez minutos e 34 segundos de duração. Nele, Daniel responde a perguntas do delegado Rivaldo Barbosa, chefe da Divisão de Homicídios, cuja imagem não aparece. Fala num ritmo mecânico, marcando o compasso com os dois dedos indicadores. Daniel não costuma usar o pronome “eu” e, de vez em quando, conjuga o verbo no pretérito mais-que-perfeito. Seu depoimento:

— Olha, lembro de pegar uma faca…

— Onde? — pergunta o delegado.

— Na cozinha.

— Quantas facas?

— Acho que uma, não, duas, uma ou duas, não lembro. Lembro que fui lá e perpetrei o ato.

— Onde?

— No quarto dos meus pais. Fui primeiro na minha mãe e depois no meu pai. Tentei perfurar o abdômen (da mãe) com a faca. Ela reagiu e correu para o corredor, e se trancou no banheiro.

— E aí?

— Meu pai acordou e lutou também, mas consegui perfurar. Uma vez perfurado pela segunda vez, ele ficou no chão…

O delegado quis saber o que Daniel dizia ao pai enquanto o atacava:

— Sempre tentava acalmá-lo e dizendo que era o melhor para ele. Que estava fazendo aquilo para o bem dele. Não era uma coisa de raiva.

Em seguida, contou que se esfaqueou duas vezes na barriga, mas não conseguiu se matar.

— Nessa altura, já me arrependera e decidi chamar a ambulância — disse ele.

Contou então que foi até o banheiro, onde sua mãe estava trancada, bateu à porta e avisou:

— Mãe, espera que vou chamar a ambulância.

Depois disso, bateu à porta do vizinho no 6º andar, segurando a barriga aberta, e pediu ajuda.

Na tarde de 2 de julho, cinco meses depois do crime, Daniel depôs na Justiça. Dessa vez, seu depoimento foi menos detalhado quanto à mecânica do assassinato e mais informativo em relação às suas razões doentias. Ele disse que acordou de manhã cedo, “em pânico” com o risco que corria e decidido a suicidar-se. Quando se viu no espelho do banheiro, de cabeça raspada, reparou que seu couro cabeludo tinha “várias sequências 666”, o símbolo da besta. A revelação deu-lhe a certeza de que ele era o próprio demônio. O juiz Fábio Uchôa quis saber se Daniel ainda tinha as sequências gravadas na cabeça. “Claro”, respondeu ele, com uma vivacidade prestativa. “Gostaria muito de mostrar para o senhor.” O juiz dispensou a oferta. Daniel voltou a pedir para exibi-las. O juiz voltou a dispensá-la. Por fim, Daniel lamentou não ter raspado os cabelos antes do depoimento, de modo que os números diabólicos pudessem ser vistos. “Porque é impressionante mesmo”, disse ao juiz. No final, fez um adendo: “Quem entrou no quarto dos meus pais acreditava que era satanás”. Seu depoimento durou menos de catorze minutos.

Não se sabe qual era o estado mental de Daniel dez ou cinco anos antes nem se os sintomas do seu transtorno eram muito ou pouco evidentes. No dia 7 de outubro, porém, oito meses depois do crime, quando o conceituado psiquiatra Joel Birman o examinou no manicômio judicial de Bangu, a pedido da defesa de Daniel, seu quadro era alarmante. Birman espantou-se que um caso tão grave nunca tivesse recebido tratamento, como se pode ver num trecho de seu laudo, reproduzido na página ao lado. De acordo com seu diagnóstico, Daniel tem esquizofrenia paranoide, possivelmente desde o início da idade adulta, período em que começou a afastar-se dos amigos. O termo “esquizofrenia” — de origem grega: skhizein (dividir) e phren (mente) — só surgiu na primeira década do século XX, criado pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler. É um distúrbio esmagador que faz o paciente ouvir vozes e sentir-se perseguido, alucinações que Daniel nunca relatara à família. É possível que esses delírios tenham se agravado só recentemente. O diagnóstico ressuscitou a memória da toxoplasmose que a mãe teve na gravidez de Daniel. Estudos recentes indicam que casos agudos de infecção pelo Toxoplasma gondii podem provocar os sintomas psicóticos da esquizofrenia. O caso de Dorinha era agudo.


O parricídio — crime de quem mata pai ou mãe, ou outro parente próximo, como irmão, avô, tio, neto — é um desafio às nossas noções de justiça, castigo, perdão. Daniel deve ir preso? Deve ser inocentado? Deve ser tratado? Interdito em todas as culturas, modernas ou antigas, o parricídio viola, de uma só tacada, dois mandamentos bíblicos: “Não matarás” e “Honrarás pai e mãe”. É um tema tão fascinante que está na mitologia e nas grandes obras da literatura universal. Em Édipo Rei, peça encenada pela primeira vez mais de quatro séculos antes da era cristã, Sófocles cria um parricida enganado e arrependido. Em Hamlet, Shakespeare dramatiza a ambição desmedida que leva um irmão a matar o outro para usurpar-lhe o trono e a mulher, desencadeando a fúria do órfão que quer vingar a morte do pai. No magnífico Os Irmãos Karamazov, Dostoievski narra o assassinato do pai pelo seu primogênito. Para Sêneca, o parricídio é “um crime que faz qualquer ser humano tremer de horror”.

Felizmente, os parricídios são raros. Nos Estados Unidos, um levantamento que reuniu dados de 1976 a 2007 mostra que compreendem menos de 1% dos homicídios em que se conhece a relação de parentesco entre assassino e vítima. No Brasil, quatro pesquisadoras — Paula Gomide, Ana Maria Teche, Simone Maiorki e Singra Cardoso — recolheram reportagens da imprensa e dados da internet e encontraram 246 casos entre 2005 e 2011. Com esses dados à mão, traçaram o perfil do parricida brasileiro: é homem, age sozinho, usa arma branca e comete o crime em casa, exatamente como Daniel. Com uma diferença: a larguíssima maioria dos parricidas são filhos que sofreram abusos severos — psicológicos, físicos, morais, sexuais — na infância ou na adolescência. Respondem por algo como 90% dos casos. Os parricidas com distúrbio mental, como Daniel, são uma minoria quase invisível, dado que surpreende quem associa doença mental à violência. (Cerca de 84% dos portadores de transtornos psíquicos passam a vida sem cometer nenhum ato violento.)


A presença da esquizofrenia, no entanto, levanta uma dúvida amarga sobre o infortúnio dos Coutinho: terá sido uma tragédia desnecessária? A psiquiatria informa que, sob tratamento e medicação adequada, Daniel, muito provavelmente, não teria surtado a ponto de esfaquear os pais, e tudo indica que na manhã do 2 de fevereiro de 2014 ele tenha tido o primeiro surto psicótico de sua vida. O poeta Ferreira Gullar, ele próprio pai de um esquizofrênico, escreveu um artigo para o jornal Folha de S.Paulo duas semanas depois do crime e, embora amigo de Coutinho, não se furtou a prolatar uma sentença peremptória: “Não sei por que os pais não solicitaram atendimento médico para interná-lo, mas não tenho dúvida de que se o tivessem feito aquela tragédia dificilmente teria ocorrido”. O diagnóstico de Gullar doeu nos familiares porque, àquela altura, ninguém sabia, nem a família, se Daniel tinha mesmo uma patologia psíquica.

Nem Pedro sabe dizer por que Daniel nunca foi diagnosticado e tratado. “Esse era um assunto sempre doloroso na família”, diz. A tolerância dos Coutinho pode ter sido resultado daquela esperança ingênua de que tudo melhore sem o temporal de verdades e dores que costuma desabar quando se aborda um problema de frente. Pode ter sido produto daquela percepção tão peculiar que nos faz enxergar com nitidez o que se passa com a família dos outros, mas nos cega diante do que acontece em nossa própria. Pode ter sido vergonha ou preconceito, comuns em casas ricas, remediadas e pobres, em razão do estigma secular da doença mental. O fato é que os pais de Daniel tentaram três vezes a ajuda de um psiquiatra, em distintas fases de sua vida. Mas o rapaz logo deixava de ir às consultas e, assim, nunca teve um diagnóstico claro nem fez um tratamento continuado.

Com amigos, Coutinho tampouco tratava do assunto. A família toda era tão discreta que parecia esconder-se de si mesma. João Roberto do Nascimento, funcionário do edifício da Lagoa desde 2001, diz que alguns moradores nem sabiam que o famoso cineasta vivia no mesmo prédio. A vizinha do 6º andar, Ana Beatriz da Silva Aguiar, conta que viu Daniel só duas vezes em trinta anos: quando ele era criança e quando bateu à sua porta para pedir ajuda, com as vísceras pulando para fora da barriga, depois de ter matado o pai. Como cineasta, Coutinho tinha o coração escancarado para ouvir a história de vida dos outros. Tinha um interesse voraz pelas pessoas anônimas, geralmente pobres, das quais arrancava confissões espantosas em seus filmes. Por isso, alguém o chamou de “psicólogo das lentes”. Como pai e marido, era fechado feito uma ostra, nunca dividia com ninguém as intimidades da vida familiar. Numa entrevista em 2012, disse: “Do que eu sou, eu não falo porque nem sei nem quero”. Até amigos se surpreenderam ao descobrir, depois do crime, que Coutinho tinha um filho com um distúrbio mental, inclusive Ferreira Gullar. Seus filmes, apenas seus filmes, eram a forma de lidar com as próprias dores e desesperanças, com seu fascínio e seu horror pela miudeza do cotidiano.

Era uma esplêndida manhã de domingo quando Daniel entrou no quarto dos pais com uma ou duas facas na mão. Primeiro, dirigiu-se à mãe. Ela dormia em um colchonete no chão. De cócoras, pegou-a por trás. Segurou-a pelo ombro com a mão esquerda. Com a direita, cravou-lhe a primeira facada, na altura do seio esquerdo. A mãe começou a gritar, acordando o marido deitado na cama. Ela ­desvencilho­u- se do filho, fugiu para a cozinha. Na fuga, caiu. O filho desferiu-lhe novos golpes. Livrou-se dele outra vez, levantou-se. Correu para o interfone, caiu de novo. Queria uma chave para trancar-se em algum cômodo, alcançou o banheiro, refugiou-se ali, ensanguentada, gritando sem parar, tomada de pânico. O pai, acordado, foi atacado pelo filho. Lutou quanto pôde. Fugiu do quarto. Tentou pegar o interfone, foi impedido. Levou duas facadas na barriga, caiu, o corpo inerte, debruçado sobre uma poça de sangue no chão da sala. O filho fincou uma faca na própria barriga. Nada. Fincou de novo. Nada. Além da dor dos golpes, não sentia nada. Subitamente, tendo sobrevivido ao próprio ataque, entendeu que as vozes haviam lhe traído. Tinham lhe dito que conseguiria se matar com uma facada na barriga. Desferiu duas, e não obteve o resultado prometido. Enganado pelas vozes, com as quais mantinha “uma intensa comunicação mental”, Daniel de Oliveira Coutinho, em surto psicótico da esquizofrenia paranoide, atribuiu o fracasso do suicídio a uma possível “proteção demoníaca” e descobriu então, traído e perplexo, que era mais difícil morrer do que continuar vivendo.

“Quando me olho no espelho, vejo três cicatrizes”, diz Dorinha, que foi internada em dois hospitais. “Tem uma grande, que deve ter pego perto de cinquenta pontos.” Coutinho, tudo indica, morreu pouco depois de ser atacado. Na tarde de 2 de fevereiro, o perito Francisco Eduardo Silva fez o exame cadavérico. Encontrou ferimentos no tórax, no abdômen, na mão direita e “grande quantidade de sangue na cavidade abdominal”. Em 26 minutos, encerrou o trabalho e concluiu que a morte de Coutinho fora causada pela “secção quase completa” da aorta abdominal, a principal artéria do abdômen, que provocou a hemorragia fatal.

Pedro, depois de receber o telefonema desesperado da mãe em que pedia socorro trancada no banheiro, desceu a Serra de Petrópolis em seu Renault Sandero. Entregou o volante à namorada, Érika, uma ruiva doze anos mais jovem, e viajou a bordo de uma esperança vã: que seu pai tivesse sobrevivido aos ataques, tal como sua mãe. Uma hora depois, ao chegar ao edifício dos pais na Lagoa, viu amigos ali reunidos com as expressões inconfundíveis do luto. Desceu do carro, olhou para a portaria no exato momento em que os bombeiros retiravam do prédio um corpo dentro de um saco de plástico preto. Era o cadáver de seu pai. Com uma voz pequena, Pedro rememora: “Fiquei olhando eles colocarem o corpo no rabecão”.

Coutinho está enterrado no Cemitério São João Batista, em Botafogo. Dorinha, com a ajuda da irmã Rita, tenta carregar uma dor maior que ela. A trágica viuvez e a prisão do filho destruíram seu mundo. Faz tratamento psicológico, toma remédios. Recuperou-se bem das facadas, mas seu estado depressivo é indomável. Numa de suas raras saídas, encontrou por acaso uma velha amiga no Shopping da Gávea. Ficou assustada, o corpo inteiro tremia. Pensou em voltar para Pernambuco, sua terra natal. Também pensou em mudar-se para a casa de Mauá, mas continua no apartamento da Lagoa. Traumatizada, tem medo de visitar Daniel sozinha. Sempre leva Rita. As visitas lhe fazem mal. Volta para casa arrasada. Pedro, que tem a mesma fisionomia e a mesma fala atropelada do pai, enfrenta tudo com resignação comovente. Luta em silêncio para não deixar a tragédia definir sua vida. “Talvez uma hora eu consiga visitar Daniel”, disse ele, mais recomposto, agora que a tragédia fez um ano. Cuida da mãe, da filha Maria Eduarda, hoje com 14 anos, e da enteada Isabelle, de 18, que o tem como pai e mora com ele.

Daniel não dá entrevistas, não recebe amigos da família e, mesmo quando a mãe vai visitá-lo, fica impaciente depois dos primeiros minutos de conversa, ansioso para acabar logo com aquilo. Em dezembro, pediu ao seu advogado, João Bernardo Kappen, 33 anos e fã da obra de Coutinho, que só tornasse a vê-lo depois do julgamento, o que pode ocorrer até março. Daniel pode ser levado ao tribunal do júri ou ser sentenciado a cumprir pena de internação de um a três anos num manicômio judicial. Ele se arrepende do que fez, mas mantém a certeza de que agiu pelo bem dos pais. Na sua percepção, as sequências de 666 ainda estão lá, cicatrizadas na cabeça, mas agora Daniel já não acredita que seja a encarnação viva do demônio. A Kappen, ele fez um apelo incomum na boca de um preso: pediu ao advogado que não tentasse libertá-lo. Quer ficar no manicômio de Bangu, onde está medicado e se sente bem.




PS: Conheci o cineasta Eduardo Coutinho através do Walter Salles e até pensei em comentar, quando ele foi assassinado, sobre ele contar tantos dramas pessoais de outras pessoas e jamais ter dado pistas que ele igualmente vivia um terremoto doméstico... Muito triste acompanhar a narrativa perfeita do André Petry... JS



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