segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Um Funcionário do Necrotério dentro do Táxi em Movimento...






Nesta semana um funcionário do Instituto Médico Legal pegou meu táxi...

Faz plantões de 12 horas com 72 de folga...

Fiquei curioso por sua profissão incomum...

Ele estava acompanhado por sua filha de cinco anos...

Informei que tenho um blog...

- Há quanto tempo você trabalha no IML?

- Dezenove anos...

- Você tem contato direto com corpos?

- Tenho, meu trabalho é braçal mesmo; tenho que pegar nos corpos...

- E o cheiro, você usa máscara?

- Uso, mas sempre dá para sentir cheiro de sangue... No início eu saia de lá com impressão que o cheiro ficava impregnado em mim... Tomava vários banhos antes de dormir... Depois acostumei...

- Você deixa a roupa no trabalho ou tem que levar pra casa?

- Antigamente tinha lavanderia no IML, mas as máquinas quebraram e levo para lavar em casa...

- Todas ensangüentadas?

- Isto, não tem jeito; meu contato é direto com os corpos, a maioria deformados por tiros...

- Eu estive somente uma única vez no IML e no momento que eu estava no pátio chegaram quatro rabecões com oito corpos cada, quase todos esfacelados a tiros de grosso calibre...

- É normal, morre muita gente de tiro... Quando é morte natural é atestado por médico e não passa por lá...

- Quantos corpos por dia?

- No final de semana, acontece de 40 corpos chegarem somente em um único dia...

- E os rabecões somente chegam lá depois de estarem lotados?

- Não, isto que você viu deve ter sido alguns anos atrás... Agora a cada vez que recolhem um corpo levam imediatamente pra gente... A imprensa fez muita pressão... Um cara era assassinado de manhã, a família ia para o IML e ficava aguardando o dia inteiro a chegada do parente morto... Não é mais assim...

- Já teve dia de passar de quarenta corpos?

- Teve uma rebelião de presídio que bateu record, não paravam de chegar corpos...

- E como é que faz para almoçar?

- Normal, páro e saio para almoçar...

- Consegue comer uma picanha mal passada?

- Agora consigo, mas no início só comia salada... Fiquei magrinho... Pensei em largar tudo, mas precisava trabalhar... Fiquei mal... Ficava noites sem dormir... Quase enlouqueci...

- Você é policial?

- Sou, nossa carreira é de Polícia...

- A Polícia tem um setor de ajuda psicológica para o pessoal do IML?

- Nada... Cada um por si... Acaba acostumando...

- Você comenta com sua esposa sobre sua rotina?

- Não, ela não quer nem escutar... Mas quando morre uma criança eu fico muito abalado e fico enchendo ela de recomendações com nossa filha...

- Criança é brabo...

- Já vi criança que se afogou num balde de água, é duro... Que esbarrou numa mesa de centro e se cortou no vidro... A família desesperada... Quando mando tomar algum cuidado com água, vidro; ela já deduz que se passou alguma coisa mas não pergunta exatamente o que foi...

- Criança e adolescente morto fogem da compreensão..

- Morre muito adolescente de forma imbecil... Brigas que poderiam ser evitadas...

- Tempo desses estive conversando com um dono de funerária que me contou que morre mais gente quando é dia de calor, é verdade?

- É verdade, no calor chega a morrer o dobro de gente...

- Qual a razão?

- As pessoas saem mais, tem mais confusões, mais discussões, os ânimos ficam mais exaltados, tem mais violência...

- Também conversei com uma legista que me contou uma coisa curiosa: muitas pessoas se matam com chumbinho e por vezes colorem as bolinhas para disfarçarem o veneno e tentar receber o seguro de vida?

- Muita gente se mata com chumbinho, mas não tenho conhecimento que suicida tente manipular a morte; a não ser quando é assassinato, deve ser, para receber seguro... Suicida quer mais é acabar com tudo... A maioria dos suicidas são pessoas solitárias, vivem sozinhos...

- E quando não aparece parente para reclamar...

- O corpo fica no IML três a quatro dias, depois é identificado por impressão digital e fotos e enterrado como indigente... Atualmente existe uma lei que diminuiu este prazo e quando estamos lotados liberamos os corpos para sepultamento com menos prazo...

- Parentes não identificam mais pessoalmente os corpos, existe um sistema de vídeo para localizar o corpo?

- Existe, mas a identificação final é feita com o corpo presente mesmo...

- É brabeira...

- Já vi mãe identificar somente a cabeça decapitada do filho quando não é localizado o restante do corpo e se abraçar no que sobrou na minha frente...

- Você sonha com isto?

- Graças a Deus, não...

- Você acredita em Deus?

- Falei ‘Graça a Deus’ por hábito...

- Acredita em Deus?

- Olha, sinceramente, não sei...

- Em vida após a morte?

- Tenho dúvidas que as pessoas que carrego nos braços irão ter outra oportunidade...

- Já imaginou no dia em que irá entrar no IML como usuário do serviço que você faz?

- Pô, taí, nunca pensei nisto... Morte dos outros é coisa normal, a nossa nunca; acho que só morrem os outros...

- Você já parou diante de um corpo e ficou imaginando como teria sido aquele corpo vivo?

- Nunca, não dá tempo para isto...

- É tudo mecânico, pega carrega, engaveta e pronto?

- Quando é criança eu fico mal... Faço uma oração... E toco em frente...

- Então, acredita em Deus...

- Fazer o quê? A gente tem que se agarrar em alguma força para continuar...

Ele salta com a filha no colo...

Sua esposa estava o aguardando na calçada...

Jorge Schweitzer


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Um comentário:

  1. profissão barra esta heim ?

    ta doido,prefiro entregar folheteo,catar latinha na rua,mas ser legista ou coveiro nunca.

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