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Cuidam os autos de ação penal pública incondicionada promovida pelo Ministério Público em face de ANDRE RODRIGUES MARINS E VANESSA MAIA FURTADO, denunciados como incursos nas sanções dos artigos 1º, inciso II c/c §4º, inciso II da lei 9.455/97, na forma do artigo 71 do Código Penal e artigo 121 §2º, inciso III, na forma do artigo 13, §2º, inciso ´a´ do Código Penal. Narra a denúncia que: ´1) Crime de tortura ( dolo direto) Os denunciados, de forma consciente e voluntária, em unidades de ações e desígnos, em dolo direto, no interior de sua residência, Situada à Rua Senador Ruy Carneiro, 330/301, Recreio dos Bandeirantes, nesta cidade, submeteram a criança Joanna Cardoso Marcenal Marins, de apenas 05(cinco) anos de idade, filha do primeiro acusado e enteada da segunda, que estava sob sua guarda, poder e autoridade dos mesmos, com emprego de violência física e psicológica, a intenso sofrimento físico e mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. O martírio da pequena vítima ocorreu a partir de 26 de maio do corrente ano, data em que ela foi entregue aos cuidados dos seus algozes, ora denunciados, em razão da guarda provisória deferida pelo Juízo de Família da Comarca de Nova Iguaçú. A vítima Joanna, pelo menos na primeira quinzena do mês de julho, era mantida dentro da casa dos acusados, com as mãos e pés amarrados, sendo deixada por horas e dias deitada no chão suja de fezes e urina. O resultado desse tratamento desumano e degradante deixou lesões físicas e psíquicas na menor, que colaboraram de sobremaneira com a baixa de imunidade de seu sistema imunológico. Nesse período de tratamentos torturantes e inflição de intenso sofrimento, a criança (entre final de junho e início de julho), foi queimada por ação dos denunciados, através de meio físico ou químico na região das nádegas, bem como na região clavicular direita, e ainda, sadicamente, lesionada por ações contundentes de forma a deixar hematomas por diversos pontos do corpo e na face, lesões essas evidenciadas pelas fotos juntadas, conforme corroboram os laudos inclusos do IML (AECD às fls. 166 usque 193; AEC às fls. 322 usque 342) e o laudo do GATE/Ministério Público ( em anexo a presente peça em 34 folhas impressas). O extremo suplício a que foi submetida a pequena vítima, conforme acima descrito, aliado a impossibilidade de qualquer contato com a genitora Christiane pelo período de 90 dias, evidentemente elevaram sobremaneira o terror psicológico sofrido pela mesma, tornando ainda mais intenso e cruel seu sofrimento mental e físico. Como resultado a criança esteve ao menos por 02 semanas com incontinência fecal e urinária, demonstrando quadro depressivo, com perda de controle dos esfíncteres. Ressalte-se que os relatos médicos deixam claro que a vítima estava em perfeitas condições de saúde física e mental quando entregue à guarda dos acusados em 26 de maio de 2010 ( fls. 124 dos autos do IP). 2) Crime de homicídio qualificado pelo meio cruel (dolo eventual na forma omissiva imprópria) Após o período acima descrito, no qual a vítima Joanna Marins foi submetida a tratamento desumano e torturante física e psicologicamente, consumando assim o crime imputado de tortura, ocorreu uma acentuada e rápida piora no quadro de saúde da mesma, com um total descaso dos acusados, que tinham a obrigação legal e de fato de cuidado com a vítima. Joanna desenvolveu quadro viral provocado pelo vírus da herpes que resultou em meningite, causa de sua morte cerebral no dia 19 de julho e posterior causa essa eficiente de sua morte, com óbito constatado em 13 de agosto de 2010, de acordo com AEC de fls. 322/ 342 dos autos de IP. Embora a pequena vítima estivesse com incontinência fecal e urinária há 15 dias, bem como com quadro convulsivo em virtude da meningite viral contraída, além das extensas lesões por queimaduras e ações contundentes, somente foi levada pelos acusados ao Hospital Rio Mar, no dia 15 para tratamento de emergência, e posteriormente nos dias 16 e 17, já em situação crítica. Nesse nosocômio teve atendimento médico impróprio que inclusive resultou em denúncia a esse Juízo em face da médica Sarita Fernandes Pereira e do falso médico Alex Sandro da Cunha Souza ( causa superveniente relativamente independente que por si só não produziu o resultado). Joanna iniciou quadro convulsivo, no mínimo, no dia 13 de julho (fls. 53 dos autos de IP; vide ainda fls. 168 e 289/290 dos autos de IP), sendo que pelo menos a partir do dia 09 de julho já não era vista no colégio. Diante do descaso dos acusados, que relataram achar trata-se de ´manhã e pirraça´, teve progressiva e rápida piora, face seu estado debilitado pelo stress físico e emocional a que vinha sendo submetida desde maio (fls. 166 dos autos do IP). Após o atendimento deficiente recebido no Hospital Rio Mar pela médica Sarita F. Pereira, os acusados foram alertados de que deveriam levar Joanna urgentemente a um neurologista face o iminente risco de morte, no entanto tal indicação médica foi completamente ignorada pelos mesmo. (fls. 153 usque 155 dos autos de IP; vide ainda fls. 218, 219 e 290 dos autos de IP). Os acusados, de forma consciente e voluntária, de forma omissiva, assumiram o risco (dolo eventual) do óbito da infante, que efetivamente ocorreu em 19 de julho com a morte encefálica, e óbito constatado em 13 de agosto de 2010, visto que a trataram de forma totalmente degradante e desumana, e mesmo apresentando: queimaduras extensas, perda da funcionalidade dos esfíncteres e em estado convulsionante contínuo, deixaram a mesma sem qualquer atendimento apropriado, tratando-a como não se trata nem mesmo um animal, deixando-a amarrada e descoberta no chão frio e em meio a fezes e urina, por dias, exposta a todo tipo de bactérias, sem citar o estado psicológico gerado com isso, o que abala ainda mais a imunidade de qualquer ser humano, ainda mais de uma criança, já fragilizada. Quando a vítima foi levada, tardiamente, ao nosocômio, sua chance de sobrevida já havia sido bastante diminuída (parecer técnico às fls. 341 do IP), contando com apenas 30% de probabilidade de recuperação. Assim, nesse segundo momento, após consumada a tortura que originou as queimaduras e demais lesões e o estado abalado com alto nível de estresse e depressão, os acusados, em novo atuar criminoso, com sua omissão deram causa ao resultado morte da vítima Joanna, vez que com seu dolo de não agir face o estado gravíssimo da criança que estava sob sua total e exclusiva responsabilidade, contribuíram de forma decisiva para o falecimento da mesma, que ocorreu através de meio cruel para a pequena Joanna, vez que causou indizível sofrimento para a mesma. Os atendimentos médicos posteriores inadequados incidiram como concausa com o tratamento dado pelos ora acusados, que por si só não produziram o resultado morte, mas com ele se somaram. É de ser destacado que o estado da vítima era tão grave que no dia 19 de julho deu entrada em coma no Hospital das Clínicas de Jacarepaguá, e em morte cerebral. Se a vítima não tivesse sido submetida ao tratamento desumano e cruel narrado, com a tortura física e psicológica as quais foi submetida, que propiciou que um vírus de herpes se desenvolvesse para uma meningite (meningoencegfalite hepética), e ainda se tivesse sido corretamente atendida desde o primeiro sinal de convulsão, ou até mesmo antes, poderia ter sido evitado o resultado morte que fatalmente adveio (vide respostas aos quesitos do laudo médico-legal do GATE/MP em anexo).´ A denúncia veio instruída com a reportagem de fls. 02-I e 02-J e com os autos do inquérito de fls. 02/377, do qual constam como principais peças: registros de ocorrência (fls. 03/15 e 358/363), termos de declaração (fls. 26/27, 28/29, 30/31, 53/55, 56/58, 108/109, 111/113, 115/116, 130/131, 132/134, 148/149, 150/152, 153/155, 156/158, 159/161, 162/165, 199/200, 204/206, 209/211, 217/219, 222/223, 224/225, 249/250, 251/253, 254/255, 283/284 285/286, 287/288, 289/290, 291/292, 301/302, 306/308, 318/319), laudos, boletins e exames médicos (fls. 64/65, 66/68/, 69/85, 86/98, 99/100, 167/168, 273/275), AECD´s (fls. 166/193 e 195/198), auto de acareação (fls. 238/239), AEC (fls. 322/343). FAC do 1º réu a fls. 384/ 386 e 481/487. FAC da 2ª ré a fls. 388/390. A denúncia foi recebida em 25.10.10 (fls. 392/399), ocasião em que foi decretada a prisão preventiva do réu André Rodrigues Marins. Foi deferida a habilitação do assistente de acusação (fls. 441). Os réus apresentaram resposta à acusação (fls. 443/478, com doc. De fls. 479), tendo a decisão de recebimento da denúncia sido ratificada (fls. 488). Na AIJ (fls. 584/589) foram ouvidos os depoimentos de 08 testemunhas (fls. 590/635). Na AIJ em continuação (fls. 669/671) foram ouvidas o depoimento de 05 testemunhas (fls. 672/698). Laudo de exame de material a fls. 720/745. Nova AIJ (fls. 769/770), ocasião em que foram ouvidas duas testemunhas (fls. 771/777), procedendo-se, em seguida, ao interrogatório dos réus (fls. 778/788 e 789/793). Na ocasião, a defesa levantou questão de ordem ao argumento de que o presente feito deveria ter sido processado conjuntamente àquele que envolve a médica Sarita e o falso médico Alex Sandro. O Ministério Público apresentou alegações finais (fls. 834/848), sustentando preliminarmente que a reunião de processos no caso em questão é facultativa. No mérito, entendeu pela desclassificação do crime de homicídio, a fim de que passem os réus a responderem pelo delito de tortura seguida de morte, destacando, por fim, a necessidade de pronúncia face à conexão com demanda em que é julgado crime doloso contra a vida. O assistente de acusação apresentou suas alegações finais (fls. 852/875), tendo pugnado pela pronúncia dos réus nos exatos termos da denúncia. A Defesa por seu turno, em alegações finais (fls. 877/891 e 892/951), suscitou preliminares de inépcia da denúncia e nulidade face à não reunião de processos. No mérito, argumentou não ter havido conduta omissiva dos réus, que procuraram tratamento médico adequado, sendo que o mau serviço médico prestado foi a causa determinante para a morte da menor. Destacou, ainda, não ter sido evidenciada a prática de tortura por parte dos réus. É O RELATÓRIO. PASSO A DECIDIR: Inicialmente, devem ser afastadas as preliminares de inépcia da denúncia e de nulidade processual por violação ao princípio do simultaneus processus, o que passo a fazer. A) Da inépcia da denúncia Doutrina e jurisprudência são uníssonas ao afirmarem que a exposição da denúncia deve se limitar ao necessário à configuração do crime e às demais circunstâncias que envolveram o fato e que possam influir na sua caracterização. Desta forma, para atender aos ditames do artigo 41 do C.P.P., não é necessário que todos os fatos e elementos que embasem a pretensão acusatória sejam detalhadamente descritos. Todavia, não pode a denúncia ser demasiadamente sucinta ou deixar de proceder à narrativa de elementos fundamentais à caracterização da figura penal, sob pena de violação às garantias constitucionais do contraditório e da ampla de defesa. No caso em questão, a denúncia narra até mesmo em detalhes todo o processo de sofrimento físico e mental pelo qual passou a vítima. Além disso, descreve adequadamente a conduta dos réus, esclarecendo a forma que a trataram enquanto essa estava sob sua guarda. Com efeito, tenho por inegável que a narrativa da denúncia foi clara e consistente, apta a viabilizar a ampla defesa dos agentes, como se depreende da análise de todos os depoimentos que constam nos autos, ocasião em que a combativa defesa atuou de maneira incisiva, pormenorizando ainda mais os fatos imputados aos seus clientes. Desta forma, deixo de reconhecer a inépcia da denúncia por entender não ter havido violação ao artigo 41 do C.P.P. B) Da nulidade por violação ao ao princípio do simultaneus processus De igual modo, não há que se falar em nulidade processual ante ao não apensamento, processamento e julgamento conjunto desta demanda com os autos nº 0251581-19.2010.8.19.00010. É certo que na decisão de recebimento da denúncia (fls. 392/ 399) foi reconhecida a conexão entre os feitos, o que teve como conseqüência a reunião de processos perante esse juízo. Aliás, uma vez sendo inegável a conexão probatória entre as duas demandas, outra não podia ser a solução apresentada a não ser a modificação da competência a ser fixada por livre distribuição, fazendo-se com que o presente processo fosse distribuído por dependência ao de nº 0251581- 19.2010.8.19.00010. Entretanto, a distribuição de demanda conexa para o juízo prevento não tem como conseqüência necessária o processamento e julgamento conjunto de ambos os feitos, sendo plenamente aplicável o artigo 80 do C.P.P. Na verdade, nulidade haveria se, apesar de reconhecida a conexão, a presente demanda fosse distribuída a outro juízo, o que traria como conseqüência lógica seu processo e julgamento por quem não seria competente para tanto. Por outro lado, distribuída por dependência ao juízo prevento, viabiliza-se o julgamento por quem, face à ocorrência de causa modificadora de competência, passa a ser o juízo natural da causa. Aqui, cumpre destacar que no momento do oferecimento da denúncia em relação a este processo, os autos nº 0251581-19.2010.8.19.00010 já estavam em andamento, de forma que o processamento e julgamento conjunto importaria no retardamento indesejável da marcha processual daquela demanda, fazendo com que, de forma desnecessária, fossem repetidos atos processuais em uma demanda em que a ré Sarita Fernandes Pereira encontrava-se custodiada. Ademais, a ausência de instrução conjunta não acarretou qualquer prejuízo à defesa. E assim entendo, pois foi em nenhum momento foram trazidas a esta demanda provas produzidas no curso da instrução que vinha sendo feita no processo nº 0251581-19.2010.8.19.00010, sendo que, sempre que se quis, se procedeu, nestes autos, à oitiva das testemunhas que já haviam sido inquiridas naquela demanda, fato que garantiu a ampla defesa dos réus e o contraditório pleno. Portanto, estou convencido de que havia motivo relevante para que não houvesse processamento conjunto de todas as demandas, operando-se à separação facultativa dos feitos (artigo 82 do C.P.P), o que foi feito sem causar prejuízo à defesa e com vistas a permitir que tivessem seu regular e, principalmente, ágil prosseguimento, atendendo-se, assim, ao princípio insculpido no artigo 5º LXXVIII da Constituição da República. Desta forma, afasto a preliminar de nulidade suscitada, passando, assim, à análise dos delitos imputados aos réus, a começar pelo de homicídio. C) Crime de homicídio qualificado pelo meio cruel (dolo eventual na forma omissiva imprópria) Em que pese todo o esforço feito pelo órgão ministerial que ofereceu a denúncia, aliado às bem lançadas argumentações do laborioso assistente de acusação, depois da análise das provas carreadas ao processo não vislumbro a presença de conduta omissiva perpetrada pelos réus e que tenha sido responsável pela produção do resultado morte da vítima. Observe-se, de início, que para a configuração do crime de homicídio por omissão não se deve perquirir toda a situação pela qual vinha passando a vítima e que será objeto de análise no momento em que for enfrentada a prática do crime de tortura. Na verdade, neste momento o que deve ser analisado é se os réus, ao constatarem o grave estado clínico da menor, se omitiram e com isso permitiram com que não fosse prestado tratamento médico adequado, assumindo, assim, o risco do resultado morte verificado. Com efeito, o depoimento prestado por Vivian Ribeiro Gonçalves de Oliveira em sede policial (fls. 318/320) revela que a menor foi atendida no Hospital Rio Mar nos dias 30.06.10 e 15.07.10. De acordo com as declarações prestadas, no dia 30.06.10 o atendimento se deu em razão de um quadro de sinusite e otite aguda, apurando-se, contudo, que o quadro geral de Joanna era bom. De igual forma, no atendimento feito em 15.07.10 novamente foi constatado o bom estado geral de Joanna, que foi medicada e liberada sem a indicação de qualquer exame complementar. Por seu turno, o perito Sergio da Cunha, ao prestar suas declarações (fls. 672/682) deixou claro que, apesar do intenso sofrimento físico ao qual vinha sendo submetida a vítima (fls. 673), essa recebeu atendimento médico adequado no dia 15.07.10. Ainda segundo o que declarou, foram incorretos apenas os atendimentos prestados nos dias 16.07.10 e 17.07.10 (fls. 679), vez que não foi efetuada a internação indicado para o caso, o que, inclusive, também foi dito pela médica Débora Maria Vieira da Silveira (fls. 6333). Também segundo o perito Sergio da Cunha, Joanna teria mais chances de sobreviver caso tivesse sido atendida por um neuropediatra. Ocorre que, além de ter procurado atendimento médico no dia 15.07.10, o réu André chegou a marcar consulta com o neuropediatra para o dia 16.07.10, como atesta a declaração prestada pelo Hospital São Bernardo (fls. 479). Assim, tenho por evidente o seu agir positivo na tentativa de evitar o resultado verificado. Some-se a isso o fato de que o médico José Eduardo Ferreira de Figueiredo afirmou (fls. 614/617) que em uma paciente imunodeprimida é possível a evolução da meningite em três ou 04 dias. Assim, tomando-se por base que a menor teve constatada sua morte cerebral no dia 19.07.10, é possível concluir que o quadro de meningite passou a ser diagnosticável em data muito próxima àquela em que a menor foi inicialmente atendida no Hospital Rio Mar. Portanto, resta claro que, apesar de toda a situação que veio a acarretar um quadro de baixa imunológica e que pode indicar a existência do crime de tortura, os réus não deixaram de procurar atendimento médico adequado para a situação da menor, tendo assim agido pelo menos a partir do dia 15.07.10. Por conseqüência, o resultado morte não decorreu de qualquer conduta omissiva, mas sim de situação pretérita, a qual, como se verá, levou a criança a um quadro imunológico que permitiu a rápida evolução da meningite herpética e o óbito de Joanna. Nesta esteira, é inviável que se impute aos réus o delito de homicídio por omissão, o que, entretanto, não significa que não possam responder pelo resultado morte apresentado. Na verdade, a morte ocorrida somente poderá ser imputada aos réus se entendida como resultado mais grave em relação ao pretendido, devendo ser apreciado e julgado se houve o dolo na conduta antecedente, isto é, se houve tortura, com a responsabilização dos réus por culpa no resultado conseqüente (morte). Em outras palavras, o que se está a reconhecer é que, caso efetivamente reconhecida a prática de tortura, seria possível concluir pela relação de causalidade subjetivo-normativa entre a conduta anterior dos réus (tortura) e o resultado posterior (morte), sendo certo, neste momento, que em nenhum momento tal relação teria sido interrompida em razão de omissão dos agentes, absolutamente inexistente na espécie. Com efeito e diante também da materialidade consubstanciada no AEC de fls. 322/342, mister que se proceda à desclassificação do crime doloso contra a vida, na medida em que, em tese, o resultado morte descrito na denúncia deve ser imputado e passível de punição como qualificador da tortura. D) Crime de tortura. Impossibilidade de apreciação nesta fase processual. Diante da desclassificação do delito doloso contra a vida, entendo ser inviável, neste momento processual, que se debata acerca da materialidade e autoria do delito de tortura. Neste ponto, cumpre observar que é plenamente possível a desclassificação na forma que ora se efetiva, bem como a eventual pronúncia dos réus, procedendo-se a um juízo de admissibilidade em relação ao crime conexo. E assim é, pois esta demanda é conexa com os autos nº 0251581- 19.2010.8.19.00010, onde há a imputação de crime doloso contra vida a ensejar a fixação da competência do Conselho de Sentença. Todavia, para que seja enfrentada a admissibilidade da acusação referente ao delito de tortura qualificada pelo resultado morte (artigo 1º, II, §3º, segunda parte c/c §4º, II da lei 9.455/ 97), viabilizando-se, assim, que réus sejam pronunciados pela sua prática, é necessário que haja um aditamento à denúncia, imputando aos réus tal delito. Em outras palavras, uma vez reconhecido ao longo da instrução que há um único crime, sem que tenha havido a interrupção do nexo causal entre tal delito e o resultado morte, outra saída não há que não a aplicação do artigo 384 do C.P.P., procedendo-se à conseqüente mutatio libelli. Observe-se que o artigo 419 do C.P.P. não autoriza ao juiz, baseado no que foi apurado durante a instrução, imiscuir-se na função ministerial e transmudar a denúncia, adequando-a ao que entende correto de acordo com as provas carreadas. Vale dizer, no momento em que verifica que não subsiste mais o crime doloso contra a vida e mesmo que mantida a competência do tribunal do júri face à existência de crime conexo, não pode o juiz alterar a imputação que vinha descrita na denúncia, pronunciando os acusados pela prática do delito que entende adequado. Perceba-se que no caso em tela a denúncia descreveu dois tipos de dolo: dolo direto (tortura) e dolo eventual (homicídio). Entretanto, como bem salientado pelo Ministério Público e diante do que já foi esclarecido no intem ´c´ supra, a instrução processual revelou que há apenas um dolo (tortura), sendo que o resultado morte deve ser punível a título de culpa (preterdolo). Com efeito, é imperioso que, operada a desclassificação, retornem os autos ao Ministério Público, a fim de que o órgão ministerial, concordando com o que ora se decide, possa aditar a denúncia, adequando-a aos termos da presente decisão e, principalmente, ao descrito em suas alegações finais. Esclareça-se que decidir em sentido contrário significa conferir ao magistrado a titularidade da ação penal, eivando de nulidade absoluta todos os atos processuais que serão praticados daqui em diante. Observe-se, também, que não há como sustentar que o réu já se defendeu de todos os fatos e que a alteração da imputação, neste momento, não lhe acarretará qualquer prejuízo. Como dito, a denúncia descreve dois tipos de dolo distintos, os quais não se confundem com o preterdolo existente no crime de tortura qualificada pelo resultado morte. Isso posto, verificado que crime de homicídio qualificado pelo meio cruel (dolo eventual na forma omissiva imprópria) merece ser desclassificado para que, em tese, passe a constar como qualificador da tortura descrita na denúncia e sendo certo, ainda, que a competência deste juízo continua preservada em razão da existência de crime doloso contra a vida conexo, DEIXO DE DECLINAR DA COMPETÊNCIA PARA UMA DAS VARAS CRIMINAIS DA COMARCA DA CAPITAL E DETERMINO O RETORNO DOS AUTOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA FINS DE ADITAMENTO DA DENÚNCIA, o que faço com fulcro nos arts. 74, § 3º, 1ª parte, 384 e 419, este com a redação dada pela Lei 11.689/08, ambos do Código de Processo Penal. Passando-se à análise da necessidade de custódia cautelar dos réus, tenho que a ré VANESSA MAIA FURTADO possui endereço conhecido do Juízo e compareceu regularmente a todos os atos processuais, não ocasionando qualquer empecilho ao regular andamento do processo e nem representando ameaça à ordem pública, motivo pelo qual deve permanecer em liberdade. No que se refere ao réu ANDRE RODRIGUES MARINS entendo que não há motivos para que continue a ser privado de sua liberdade. Como se sabe, a questão deve ser analisada à luz dos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal. Vale dizer, para a manutenção da prisão preventiva do acusado deve haver a prova do fato delituoso, indícios suficientes de autoria, além dos requisitos previstos no artigo 313, 1ª parte do C.P.P. No caso dos autos, a materialidade e os indícios de autoria em relação ao delito de tortura com resultado morte estão evidenciados. Entretanto, a prova dos fatos criminosos e os indícios suficientes de autoria não são bastante para embasar a custódia cautelar pretendida. Deve-se, além disso, constatar-se que a prisão é instrumento indispensável para a garantia da ordem pública, para a conveniência da instrução criminal ou para a garantia da aplicação da lei penal, aferindo-se, também, a periculosidade do agente. Com efeito, quando da análise da prisão cautelar, não pode o juiz decidir baseado na gravidade em abstrato do delito e tampouco pode pretender antecipar a aplicação de qualquer tipo de sanção. Neste ponto, observo que, em delitos de grande repercussão midiática, muito se tem falado sobre a possibilidade de prisão cautelar como forma de preservar a credibilidade da justiça. Tal argumento, inclusive, foi ventilado na decisão de fls. 392/399, a qual recebeu a denúncia e decretou a prisão preventiva de ANDRE RODRIGUES MARINS. Todavia, entendo que a preservação da credibilidade do Poder Judiciário somente será alcançada se este se pautar pelo fiel cumprimento das leis e da Constituição da República, adotando postura austera de dissociada de interferências externas. Lembre-se que há tempos o Supremo Tribunal Federal sedimentou o entendimento no sentido de que o clamor popular não pode servir de fundamento à prisão preventiva do agente, a qual não pode ser vinculada à gravidade em abstrato do delito. Entretanto, valendo-se de inegável talento retórico, alguns operadores do direito passaram a trabalhar com a idéia de decretação de prisões cautelares com vistas à manutenção da credibilidade da Justiça. Ocorre que, prender alguém em razão da simples prática de delito de maior gravidade e entender que assim resta resguardada a credibilidade da justiça nada mais é do que viabilizar uma prisão com base no clamor popular e ferir de morte a lei processual penal e a Constituição da República. Com efeito, toda decisão pautada unicamente no clamor popular ou na pressão dos meios de comunicação representa manifesta afronta ao princípio do devido processo legal, permitindo a violação de garantias constitucionais arduamente conquistadas. No caso em questão, percebo que o réu não pretende furtar-se à aplicação da lei penal, na medida em que possui residência fixa e emprego certo, tendo sempre comparecido aos atos para os quais foi convocado, devendo-se observar que foi preso no seu local de trabalho. De igual modo, não há que se falar que a manutenção do réu em liberdade é medida que poderá acarretar risco à ordem pública, não havendo qualquer indicativo nos autos no sentido de que a ocorrência de outro fato criminoso é iminente. Note-se que os fatos ventilados na denúncia se referem a vítima pontual, não havendo qualquer elemento que leve a crer que as demais filhas do réu corram o mesmo perigo e possam ser vítimas do mesmo tipo de delito que lhe é imputado. Note-se que as duas outras filhas do réu sempre viveram com esse e nunca se teve notícia de que teriam sido vítimas de qualquer prática criminosa. No mesmo sentido, percorrendo os documentos de fls. 138/145 e a FAC do réu e levando-se em conta também os depoimentos da genitora de Joanna, tem-se por claro que os supostos envolvimentos do réu com ações delituosas refere-se somente a situações de suposta violência doméstica. Neste ponto, cumpre destacar que é inegável o clima de animosidade entre o réu e a Sra. Cristiane Cardoso Marcenal, fato que impõe muita cautela na análise de qualquer noticia criminis feita por um ou por outro. De toda sorte, eventuais episódios de violência doméstica que possam vir a ocorrer deverão ser objeto de análise no juízo competente (Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher), ocasião em que o réu poderá ter deferidas contra si medidas protetivas de urgência. Aqui, cumpre salientar que as medidas protetivas de urgência são instrumentos que levam a uma restrição de liberdade do agente, mas que não o privam de sua liberdade. Neste esteira, afigura-se desarrazoado que este juízo mantenha o réu custodiado em razão de tais práticas, que em sua maioria foram informadas pela Sra. Cristiane Cardoso Marcenal e seus familiares. Portanto, estou convencido de que, se solto, o réu não apresentará qualquer risco a ordem pública e que eventuais situações violência doméstica, notadamente as que possam ser vivenciadas pela Sra. Cristiane Cardoso Marcenal, devem ser tuteladas através de medidas protetivas de urgência, as quais importam apenas em restrição de liberdade e não em encarceramento. Por último, mesmo diante da possibilidade de reabertura da fase instrutória, concluo que o réu não apresenta risco à escorreita colheita das provas. E assim é, pois não há nos autos qualquer prova concreta que indique que as testemunhas ouvidas em juízo passam vir a ser influenciadas pelo réu com vistas a alterarem a verdade dos fatos. No mesmo sentido, as declarações constantes na reportagem de fls. 02-I e 02-J são insuficientes para demonstrar que, uma vez solto, ANDRE RODRIGUES MARTINS irá causar qualquer mal injusto e grave àqueles que depuseram em seu desfavor. Perceba-se que na aludida reportagem o réu disse que iria perseguir judicial, civil e criminalmente aqueles que o caluniaram e o difamaram. Ora, tal frase não revela qualquer conteúdo ameaçador apto a ensejar o encarceramento do réu. Na verdade, trata-se de extremado inconformismo com as imputações que vinham sendo feitas, tendo o réu manifestado a intenção de vale-ser da justiça para ver processados aqueles que, no seu entender, estavam faltando com a verdade. Desta maneira, tem-se por claro que as declarações de fls. 02-I e 02-J não demonstram qualquer intenção escusa do réu, que de forma clara e confiando na sua inocência informou que pretendia processar os que estariam imputando a ele fatos dos quais se diz inocente. Por fim, considerando-se a grande repercussão do caso, é importante que se ressalte mais uma vez que não se está aqui a dizer que o réu não teria praticado o crime que ora se julga. Na verdade, tal questão ainda está pendente de enfrentamento, de forma que, eventual punição, se necessária, deverá ocorrer após a oitiva de todas as testemunhas, com observância das garantias constitucionais conferidas aos acusados. Por ora, contudo, o que se pode afirmar é que a manutenção do réu no seio social não acarreta qualquer ameaça, seja à ordem pública, seja à aplicação da lei penal, seja à oitiva das testemunhas. Em sendo assim e não se verificando, neste momento processual, a presença dos requisitos legais para a custódia cautelar de ANDRE RODRIGUES MARINS, revogo sua prisão preventiva decretada a fls. 399. Expeça-se alvará de soltura. Dê-se ciência ao M.P., ao assistente de acusação e à defesa. Após, esgotadas as vias impugnativas, retornem os autos ao Ministério Público, a fim de que esse possa aditar a denúncia, em atenção ao ora decidido. P.R.I.
Eu acho que o Juiz está falando de outro processo!
ResponderExcluirEstá gravado na TV para todos:
Vou perseguir a baba (uma frase)
Vou processar judicialmente todos (Outra frase)
Os processos por agressão NÃO SÃO TODOS ENTRE CRISTIANE E ANDRÉ.
eTC...
ele socorreu, agora vai TUDO pra conta da dra. e do falso medico
ResponderExcluirSenhor juiz, o senhor vai proteger a família da vítima?
ResponderExcluirDará também proteção as duas filhas do casal assassino?
Protegerá a sociedade do assassino confesso?
Ficará muito SURPRESO como fez sua colega de profissão se ele voltar a torturar e matar?
Juiz Alberto Fraga,
ResponderExcluirPela sua decisão, verifico que o Sr. se importa sim e muito com a opinião da mídia e do público.
Verifico, também, que sua fundamentação na decisão de revogar a prisão preventiva de André Marins teve um tom de pré-defesa do réu, embora, mais adiante, afirme que suas considerações não devam ser interpretadas sua concordância aos atos “comprovadamente” (suas palavras) praticados pelo mesmo à Joanna Marcenal.
Quanto à sua preocupação em justificar que não pode manter o acusado preso sob o argumento de manter a credibilidade da Justiça, sinto informá-lo, caso ainda não tenha dado por isso, que a Justiça do Estado do Rio de Janeiro há muito está desacreditada pelo público, e que, pasme-se, se for o caso, sua lastimável decisão reforça tal descrença dos fluminenses no seu Judiciário.
Sem mais, sou,
Maise