Entrevista: Clarisse Muxfeldt Gularte
"Senhor, tenha piedade"
Thaís Oyama
Até o ano passado, a dona-de-casa Clarisse Muxfeldt Gularte, 60 anos, divorciada, tinha uma história semelhante à de muitas mães cujos filhos enveredaram pelo labirinto das drogas. Sofreu o choque da descoberta, sentiu-se culpada pela situação, passou pela saga das internações e, por várias vezes, nutriu a esperança – sucessivamente frustrada – de que finalmente o filho iria "dar certo". Sua trajetória começou a tomar um rumo diferente em julho de 2004. Rodrigo Gularte, de 32 anos, caçula de seus três filhos, foi preso com 6 quilos de cocaína escondidos em pranchas de surfe quando tentava entrar na Indonésia. A lei daquele país prevê pena de fuzilamento para traficantes de drogas. No início de fevereiro, o surfista foi condenado à sentença máxima – e aguarda, preso, o julgamento do recurso. Em entrevista a VEJA, Clarisse conta o percurso de Rodrigo – da infância vivida em Curitiba à fatídica viagem à Indonésia – e fala da própria vida, agora dedicada a salvar o filho do corredor da morte.
Veja – Como a senhora recebeu a notícia de que seu filho havia sido condenado à morte?
Clarisse – Pouco antes do julgamento, nós conversamos. Ele me disse: "Olha, mãe, vá se preparando para o pior. Dificilmente vai ter outra sentença". Mesmo assim, acho que foi o segundo pior momento da minha vida. O primeiro foi quando eu soube que ele havia sido preso. No dia em que viajou, fui eu quem o levou ao aeroporto. Quando nos despedimos, ele me abraçou e disse: "Se acontecer alguma coisa comigo, quero que a senhora saiba que eu amo e admiro muito a senhora". Dias depois, li que um surfista brasileiro havia sido preso no aeroporto de Jacarta, mas o jornal dizia que era um paulista. Até comentei a notícia em casa, mas nem me passou pela cabeça que pudesse ser o meu filho.
Veja – Como foi que a senhora soube que era?
Clarisse – Eu estava fazendo compras no shopping quando minha filha ligou: "Mãe, acho melhor a senhora voltar para casa. O surfista preso é o Rodrigo". Caí em desespero. Larguei as compras no balcão e saí gritando pelo shopping: "Não é possível, não é possível". Cheguei ao prédio ainda gritando – os porteiros ficaram atordoados. As pessoas falam que, nessas ocasiões, sentem o chão desaparecer. Foi exatamente o que eu senti: era como se não tivesse mais o chão debaixo dos meus pés.
Veja – Em que a senhora pensava?
Clarisse – No começo, tive uma raiva muito grande do meu filho. Tão grande que cheguei a dizer para o meu genro: "Quero que o Rodrigo apodreça nessa prisão, não vou mexer uma palha por ele!" Pensava: ele teve todo o carinho, todo o amor, como foi fazer isso? Em todos os negócios em que ele quis investir, eu ajudei – às vezes colocando um dinheiro que nem podia. Todas as chances que pediu, ele teve. Por que fez isso?
Veja – Quando a senhora soube que ele usava drogas?
Clarisse – Acho que ele tinha 15 anos. Comecei a achar que ele estava usando maconha. Ele já fazia surfe e todo mundo dizia que era um ambiente de muita droga. Também dormia muito, e as pessoas dizem que maconha dá sonolência. Mas eu não tinha certeza, nem sabia bem que cheiro tinha a maconha. Por via das dúvidas, coloquei-o na terapia. O médico era da mesma equipe que tratava meu filho mais velho, que, nessa época, enfrentava um problema grave. Depois de seis meses de tratamento, o médico me chamou e disse: "Dona Clarisse, eu sei que a senhora está tendo muita despesa com seu filho mais velho, não acho justo que gaste também com o Rodrigo. Ele é um menino sadio, não tem nada". Aí, pensei: "Estou vendo fantasmas de dia". Passaram-se uns anos e começamos a ver que ele estava mesmo envolvido com drogas.
Veja – A senhora se sente culpada por ter demorado a perceber?
Clarisse – Já me senti muito culpada, sim. Mas acho que algumas características do Rodrigo atrapalharam essa avaliação.
Veja – Que características?
Clarisse – O Rodrigo nunca foi de estudar. Chegava sexta-feira, ele pegava a prancha, tomava um ônibus e ia para a nossa casa de praia. Mas, tirando isso, era um menino completamente normal. A gente ouve falar que a pessoa que se droga fica agressiva. Meu Deus, o Rodrigo nunca levantou a voz para mim! Eu me lembro dele me ajudando a carregar sacolas de compras, voltando alegre da escola. "Chegou a alegria da casa", a gente dizia. Ele vinha e já ligava aquele som barulhento, sempre de bom humor. Era o mais extrovertido dos filhos, o que tinha mais amigos. Não agia como um dependente de drogas.
Veja – Como foi que a senhora teve certeza de que ele havia se tornado um?
Clarisse – Quando ele bateu o carro. Era um Primeiro de Maio, ele devia ter uns 20 anos. Estava visivelmente drogado. Nesse dia, chamei o médico em casa para interná-lo – à força, se fosse preciso. Acho que ele ficou uns dez dias internado. Porque uma coisa é certa: nenhuma internação funciona se a pessoa não quer. E o Rodrigo nunca admitiu que era dependente.
Veja – O que ele dizia?
Clarisse – Ele dizia que só fumava maconha e que maconha fazia menos mal do que o cigarro. Trazia reportagens para eu ler, com os "benefícios" da maconha. Dizia que tinha controle: "Eu paro quando quiser, eu domino". Mas ele usava cocaína também.
Veja – E traficava?
Clarisse – Quando ele tinha mais ou menos 25 anos, disse que queria dar um tempo na faculdade e trabalhar. Falou que queria montar uma casa de massas em Florianópolis. Acreditei que, dessa vez, ele fosse engrenar. Todo mundo dizia: "Mas você vai colocar dinheiro em mais um negócio do Rodrigo?" Eu falava: "Vou. Vou batalhar por ele". Fui avalista, reuni dinheiro e compramos forno para as pizzas, alugamos uma casinha para ele morar e o negócio começou a ir bem. Eu ia sempre de Curitiba para lá, ajudá-lo. Ele atendia como garçom e eu ficava com ele até 1 hora, 2 da manhã. No dia seguinte, eu ia à feira cedo, comprar os temperos, as bebidas. Mas comecei a notar algumas coisas diferentes.
Veja – Por exemplo?
Clarisse – Os amigos chegavam e chamavam o Rodrigo de lado. Não iam lá para comer. Chamavam, conversavam num canto e iam embora. Falei com o Rodrigo e ele disse que eu não me preocupasse. Um dia, uma senhora que eu conhecia, mãe de um rapaz, também surfista, que teve problemas com drogas, disse: "Clarisse, você não está percebendo que isso está virando um ponto de drogas? Se você não fizer nada, eu vou chamar a polícia". Aquilo me deu um choque! Fiquei arrasada. Naquele dia, quando o Rodrigo acordou dizendo que ia para o restaurante, eu disse: "Não precisa ir. Eu fechei o restaurante". Falei que, com a minha conivência, ele não faria mais nada. Disse a ele que esquecesse de mim. Fui para a rodoviária e chorei a viagem inteira – eu me senti apunhalada pelas costas. Só depois de quase dois anos é que nos reaproximamos. Ele voltou para Curitiba, ficou comigo um tempo e decidimos que ele iria para a nossa fazenda, no Paraguai, trabalhar com meu irmão.
Veja – Foi lá que ele foi internado pela segunda vez?
Clarisse – Foi, por um período curto também. Um pouco depois, ele insistiu em voltar para Florianópolis. Eu disse que ele só voltaria se fosse para estudar. Ele passou no vestibular para administração e eu cheguei a ir muitas vezes às aulas com ele, para ver se estava mesmo freqüentando a faculdade. Quando ele viajou pela primeira vez para a Indonésia, tinha parado de estudar novamente. Disse que iria investir na importação de móveis de Bali.
Veja – A senhora foi vê-lo na prisão. Como foi a visita?
Clarisse – Ele ainda estava em um lugar provisório, um quartel militar. Vê-lo com aquele coletinho de preso, atrás das grades... Aquilo foi horrível.
Veja – Ele estava deprimido?
Clarisse – Mais envergonhado do que deprimido. E tentava me tranqüilizar. Quando perguntei se ele não tinha roupas de cama, respondeu: "Mas eu não tenho cama". Eu disse: "Mas nem um colchonete, nada?". Ele falou: "Eu durmo na laje, mãe". E logo emendou: "É ótimo para a coluna".
Veja – Como era a prisão?
Clarisse – A comida, claro, não era lá essas coisas: arroz frito, com macarrão frito e uns pedacinhos de galinha, sempre igual. O pior de tudo é o calor. Faz calor 365 dias por ano lá, sem nenhuma brisa. Dentro da cela é muito quente. Mas ele está sendo bem tratado. Pude visitá-lo todos os dias, no mês que passei lá. Depois disso, ele foi transferido. Mandou uma carta para toda a família, pedindo desculpas.
Veja – A senhora perguntou por que motivo ele fez o que fez?
Clarisse – O Rodrigo é muito ingênuo. As pessoas sempre o enredam com uma facilidade muito grande. Não sei se a história de importar móveis de Bali já era mentira, ou se ele pretendia usar o dinheiro da droga para investir de fato no negócio. Talvez ele tenha pensado em se reabilitar diante da família. Meu filho mais velho é engenheiro civil, minha filha é farmacêutica e bioquímica. Já o Rodrigo nunca conseguiu se aprumar na vida. Entrou em quatro faculdades e não terminou nenhuma. Tentou vários negócios e fechou todos. A família dizia: "Ele nunca vai dar certo, só dá preocupação". Mas eu falava: "Gente, vocês não acham que, se ele pudesse, também gostaria de ter uma profissão, uma mulher, filhos?".
Veja – Juridicamente, qual a situação dele agora?
Clarisse – Acabamos de entrar com o pedido de recurso. Se ele for novamente condenado à morte, sobra só a possibilidade de perdão presidencial. Temos um advogado lá, mas ele nem sempre está disponível para responder a todas as dúvidas que temos. No julgamento, por exemplo, ele não foi, mandou seu secretário. A vice-consulesa da embaixada, que tem nos ajudado muito, acompanhou a sessão. Contou que a sala estava lotada de militantes antidrogas e que o clima era muito tenso. Eles gritavam: "Pena de morte, pena de morte!". Eu tento pensar que, se o Rodrigo não tivesse sido pego, iria se enredar de vez nessa vida. Agora, pelo menos, está isolado, sem drogas, pode refletir sobre o que fez. Talvez seja uma chance que Deus está dando a ele. Se não me apegar a essa idéia, entro em desespero.
Veja – Quando será o próximo julgamento?
Clarisse – Não sabemos. Além da confirmação da pena, ele pode ser condenado à prisão perpétua ou a uma pena mais branda. Eu sei de uma coisa: entre a pena de morte e a prisão perpétua, prefiro que meu filho seja morto. Passar o resto da vida na cadeia, com 32 anos? Ia ser um sofrimento muito grande para ele – e para a família também.
Veja – A senhora parece ser uma mulher forte.
Clarisse – Pois é, os filhos chegam, eu dou risada, cheguei a fazer festa de Natal no ano passado, por causa das netinhas. Tento sempre parecer alegre, otimista. Mas, para mim, a vida acabou. Não posso mostrar isso, porque tenho outros dois filhos que também precisam de mim. Mas não tenho vontade mais nem de sair de casa. Outro dia, teve um casamento de amigos muito próximos e queridos. Não fui. Não quero que sintam pena de mim. Também não quero constranger as pessoas.
Veja – Que futuro a senhora imaginava para o Rodrigo?
Clarisse – Ele sempre adorou mexer com terra, bicho, natureza. Eu me lembro dele pequenininho, voltando da fazenda no colo do pai, dormindo, exausto. Ele adorava ajudar a plantar, mexer com animais, andar a cavalo. Nunca gostou muito de sociedade, essas coisas. Preferia o mato. Perto da fazenda que temos no Paraguai, há uma vilazinha, onde ele conhecia todo mundo. Dizia: "Mãe, acho que vou ficar por aqui, arranjar uma terra, casar com uma italianinha". E eu achava que seria assim.
Veja – Há alguma coisa que a senhora acha que poderia ter feito para evitar a situação em que ele se encontra hoje?
Clarisse – Acho que eu deveria ter acreditado menos nele. Poderia ter duvidado mais, checado até o fim, quando ele negava certas coisas. Mas a gente nunca quer acreditar que o nosso filho é um drogado. A gente não quer admitir.
Veja – Se a senhora pudesse falar com o juiz que vai decidir o destino do Rodrigo, o que diria a ele?
Clarisse – Eu diria: o senhor tenha piedade. O Rodrigo fez o tráfico, é verdade. Mas, do fundo do coração, eu digo: ele não é um mafioso, não é um barão da cocaína. É um ingênuo, um bobo que nunca teve medo das coisas. Foi um laranja nessa história – e um laranja muito pequenininho. Sei que as leis daí são rígidas e têm de ser respeitadas, mas será que ele merece uma pena tão cruel?
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