domingo, 2 de junho de 2013

Alice Devaux, cafetina dos anos 1950 falecida em 1989, terá bens leiloados






RIO - As paredes desbotadas, o forte cheiro de mofo e os vidros quebrados da cobertura do prédio de número 454 da Avenida Beira Mar, no Centro, em nada lembram o burburinho que era a casa de Alice Devaux nos anos de 1950. 

Influente entre políticos e empresários da época em que a cidade ainda era capital federal, a francesa era uma mulher requisitada. 

Após o expediente, seu apartamento, com uma espetacular vista para a Baía de Guanabara, era o lugar ideal para afrouxar o nó da gravata, bebericar uma champanhe e fazer novas amizades. 

A movimentação na cobertura não era apenas pela qualidade da bebida ou pelo bom papo da anfitriã. 

Alice, na verdade, era uma cafetina de luxo. 

A qualidade de seus serviços lhe rendeu um patrimônio de 16 imóveis, avaliados em mais de R$ 10 milhões, que serão leiloados pela prefeitura dentro de até dois meses. 

Falecida em 1989, aos 86 anos, a francesa não deixou herdeiros nem testamento. 

Por quase 20 anos, seu espólio foi administrado pela Uerj. 

Em 2009, porém, após longa batalha judicial, a prefeitura se tornou dona dos bens. 

Uma lei federal de 1990 determina que, na falta de herdeiros ou testamento, o patrimônio fique para o município. 

Antes disso, os bens iam para os estados e, no caso do Rio, a Uerj os recebia. 

Além de imóveis no Centro, Alice era dona de uma chácara na Gávea, com quase quatro mil m², avaliada em R$ 5 milhões. 

A história de Alice Devaux no Brasil começa em 18 de abril de 1925, quando desembarcou pela primeira vez no porto do Rio, vinda de Paris. 

Então com 21 anos, a jovem retornou por três vezes ao seu país de origem antes de se estabelecer definitivamente no Rio, em dezembro de 1931. 

Loira, alta, muito magra e sempre maquiada, jamais perdeu o característico sotaque francês. 

Conhecidos descrevem a francesa como uma pessoa tranquila e reservada, que não falava sobre suas atividades profissionais. 

Todos no prédio sabiam do seu ofício. 

Muita gente importante já andou por estes elevadores — relata o aposentado Roberto Lanaro, de 81 anos, que mora até hoje no apartamento abaixo da cobertura. 

Em seu processo de naturalização, finalizado em 1951 e ao qual O GLOBO teve acesso, ela declarou viver de rendimentos, que lhe garantiam cerca de 25 mil cruzeiros por mês. 

Corrigido pelo Índice Geral de Preços (IGP), do Banco Central, o valor equivale a R$ 21.700 atualmente. 

Além dos imóveis, a cafetina possuía 1.036 ações da Companhia de Luz Steárica, cada uma no valor de 200 cruzeiros, e cerca de 1 milhão de cruzeiros no extinto Banco Boavista. 

Em valores atuais, as economias da francesa equivaliam a pouco mais de R$ 1 milhão. 

Antes disso, na década de 1930, a francesa já havia sido sócia de uma empresa chamada Controle Industrial e Financeiro SA, ao lado dos irmãos Alfredo e Raul Monteiro Guimarães. 

Mas o que lhe garantia o alto padrão de vida era o aluguel de rendes-vouz’ — apartamentos usados para encontros pessoais — que lhe garantia o alto padrão de vida que levava. 

Para quem buscava discrição, Alice era um porto seguro. 

— Naquela época, havia registro de todas as pessoas que se hospedavam em hotéis. Os imóveis dela eram a garantia de que esses encontros permanecessem secretos. Ela tinha camareiras que deixavam os apartamentos sempre prontos para quando os clientes quisessem utilizá-los— diz um antigo inquilino de um imóvel comercial da francesa. 

Se atualmente há poucas testemunhas que conviveram com Alice , há muito gente que jura conhecer a Alice morta. 

Os porteiros do prédio de número 06 da Avenida Almirante Barroso, no Centro, onde ela também possuía imóveis, garantem ainda vê-la vagando pelos corredores durante a madrugada. 

Vestindo muitas joias, ela está sempre segurando uma taça de champanhe. 

Corre ainda a lenda de que teria sido a francesa a responsável pelo prédio não vir abaixo quando do desabamento do vizinho prédio Liberdade, em janeiro do ano passado. 

Entre as histórias, no entanto, a certeza é que tratava-se de uma pessoa solitária. 

Devaux nunca casou nem teve filhos. 

Em sua ficha de naturalização, declarou como motivo de seu pedido o fato de “gostar do Brasil e não ter mais ninguém na França”. 

Desabitada há quase 20 anos, a cobertura da Avenida Beiramar ainda não teve seu preço mínimo definido. 

De acordo com um funcionário da prefeitura, o valor não deve ultrapassar R$ 1 milhão, já que o imóvel, com infiltrações, vazamentos e problemas elétricos, necessita de uma ampla reforma antes de voltar a ter moradores. 

Segundo o superintendente de patrimônio imobiliário da prefeitura, Fabrício Tanure, cerca de 35 casos de heranças jacentes chegam ao seu conhecimento todos os anos. 

Após o registro do óbito e a constatação de que há uma herança sem beneficiários, é iniciada uma investigação. 

— Os imóveis não podem ser vendidos nos cinco primeiros anos após a morte do proprietário. Neste meio tempo, há possibilidade de surgir um herdeiro, um parente de até quarto grau. Os bens podem ser alugados, para pagar as despesas do espólio — afirma Tanure. 

— Todos os rendimentos ficam em uma conta judicial e não podem ser mexidos. O mesmo vale para a venda antecipada de alguns bens.



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