segunda-feira, 24 de março de 2014
Enterrem meu coração na curva do Rio
Dia desses encontrei Nelson Rodrigues Filho, o Barba, no Crematório do Cemitério do Cajú no Rio de Janeiro...
Lógico, parece episódio de 'A vida como ela é' eu ser apresentado ao filho do Nelson Rodrigues dentro de um cemitério...
Não é...
Deixa eu explicar melhor...
Nelsinho foi à cerimônia de sepultamento do ex-guerrilheiro Manoel Henrique Fereirra (que sequestrou o embaixador alemão Ehrenfried von Holleben durante a ditadura) e se perdeu por entre as catacumbas...
Ocorre que existe um antigo crematório que foi substituído pelo do Memorial do Carmo e ele se dirigiu ao que já não funciona mais, localizado muito distante do atual...
Deu para entender?
Se não entenderam, me enviem email que eu esmiuço melhor...
Então...
Eu havia chegado ao Caju; um senhor no meio da via, desesperado, pediu que eu resgatasse um amigo seu que se perdeu...
Me deu a descrição de um sujeito de barbas longas, tal um personagem do Harry Potter ou do Senhor dos Anéis; sem me avisar que era o Nelsinho Rodrigues...
O camarada me deu 20 reais e informou que eram duas pessoas, junto com o barbudo e que não necessitava ele ir junto...
Reagi brincando:
- Amigo, nunca dê dinheiro antecipado para um taxista que você jamais viu na vida, ele irá evaporar... Você vem comigo!
Me acompanhou...
No caminho fui conversando, já que ele estava muito tenso...
Passamos ao lado de um mar de sepulturas e mausoléus abandonados que somente enlameadas flores de plástico tentavam nos induzir que ente queridos ainda eram lembrados...
Quase na chegada do antigo crematório, existe um terreno amplo com simétricas cruzes, umas ao lado das outras...
Por entre as cruzes enumeradas, um gramado longo...
Grama de mato baixo, que a própria natureza traçou o tapete irregular e a chuva e o vento tratou de redesenhar...
Como num sopro de Deus em direção aos desvalidos sepultados...
Comentei que preferia ser sepultado naquele gramado do que em
ostentosos monumentos caindo aos pedaços que mais assustam do que movem lembranças boas...
Meu passageiro me alertou que ali são enterrados os indigentes em cova rasa...
Sem problema...
É ali que quero ficar para sempre, já que ninguém jamais irá me visitar mesmo...
E, de verdade em verdade vos digo, se este meu desejo não for atendido retorno para puxar o pé de cada um de vocês e estarei de plantão no canto das suas salas com um lençol branco encobrindo meu esqueleto tal um Pluft...
Não permitindo que nenhum de vocês jamais possam ir até a geladeira beber água ou apanhar um quindim no meio da madrugada...
Eu que sempre desejei de zoação que meu coração seja enterrado na curva do Rio...
Acho que encontrei minha esquina...
Não quero mais cerimônia com chorosas carpideiras de escapulário...
Desesperadas vestidas de preto com terço na mão...
Acompanhadas por oficiais de justiça tentando me entregar alguma derradeira intimação dos bandidos vagabundos que me processam...
Embarquei nesta viagem enquanto meu passageiro ria de soluçar...
Chegamos...
Quando avistei o tal barbudo até então incógnito:
- Pô, este é o Nelsinho Rodrigues e não personagem de triologia que não a real...
- Você o conhece?
- Lógico, todos o conhecemos!
Nelsinho senta ao meu lado e estende a mão ao me ser apresentado:
- Nelson, este é o taxista mais gente boa e inteligente do mundo... Ele é surpreendente...
Juro que fico até constrangido em reproduzir a frase acima, mas como é absolutamente verdadeira vocês não entenderiam a atenção que o Barba me dispensou logo após...
Qualquer elogio sempre trava a nossa próxima performance natural que qualquer outro interlocutor passa a aguardar quase a justificarmos a declaração...
Algo como você ser apresentado como um cômico perfeito e todas as piadas do seu repertório imediatamente sumirem quase que por encanto...
Pois bem...
Engraçado, para quem nunca esteve tão próximo do Nelson Rodrigues Filho é surpreendido...
Nelsinho é muito alto e sua barba imensa compondo sua sisudez esconde uma pessoa cativante e cortês...
Comento de quando ele possuía um bar, o Barba's, em Botafogo que era ambiente de debate político onde o Brizola e o Darcy Ribeiro costumavam frequentar...
Depois, o Barba's se mudou para o Largo do Machado...
Me conta que pretende reabrir na Lapa...
E me convidará para a inauguração...
Relembro um seriado da Globo sobre seu pai e um filho do Nelson raspou a barba para interpretar um personagem...
Brinco que imaginei que ele havia raspado a barba atendendo a Rede Globo...
Ele ri:
- Jamais, foi meu irmão!
Pensei em rememorar o episódio em que seu tio foi assassinado dentro da redação do jornal que seu pai, Nelson Rodrigues, trabalhava ao ele me avisar que o Mário Filho (nome do Estádio Maracanã) também era irmão do cronista...
Nelsinho era um atuante ativista de esquerda em plena ditadura e foi preso...
Já o escritor Nelson Rodrigues era de direita, ferrenho...
Ao Nelsinho ser preso, o escritor se encontrou com um General do Exército e pediu que pegassem leve no interrogatório do filho...
Consegui encontrar na rede uma foto do Nelsinho preso, na cadeia da Frei Caneca ao receberem a visita do arcebispo do RJ, Dom Eugênio Salles, ao lado do guerrilheiro Manoel Henrique Ferreira que ele estava comparecendo à cremação naquele dia...
Não consegui conversar com o Barba Nelsinho tudo que gostaria, antes de desembarcar seu celular tocou e teve que atender a Globo querendo seu depoimento sobre Manoel Henrique Ferreira...
Antes de saltar, Nelsinho aperta novamente minha mão:
- Em breve nos encontraremos, com certeza... De preferência que não seja em cemitério...
Respondo:
- E se for em cemitério, que nenhum de nós dois esteja deitado com velas em volta...
Todos soltam uma gargalhada dentro do carro...
Jorge Schweitzer
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