terça-feira, 14 de maio de 2013

Quarto de Dormir







Foi hoje...


Onze horas da manhã...


Numa rua tranquila na Praça da Bandeira...


Rua Barão de Ubá...

Na calçada...


Uma senhora negra idosa muito magra se ampara numa gasta muleta de alumínio...


Sozinha...


Por vezes, agarra as grades que separam os jardins dos prédios tentando alguma manobra a dar alguns passos improváveis...


Ela só possui movimentos do lado direito...


Sua mão esquerda é inerte repuxada para o lado de dentro provocada por algum antigo AVC...


Muitas pessoas param para perguntar se precisa de ajuda e seguem em frente...


Muitas...


Fico curioso para saber a razão de ninguém ajudar...


Mas, não páro para perguntar a razão...


Se não aceitou ajudar de ninguém não seria eu a interferir na sua história...


Não sou a palmatória do mundo, tenho minha vida para cuidar...

Passo por ela e sorrio...


Ela me devolve sem falar nada...


Entro no carro estacionado duas ruas adiante...


Ela não me sai da cabeça...


Eu não dormiria jamais se não voltasse para socorrê-la...

Guio até o local e a encontro no mesmo lugar, segurando a mesma grade...


Saio do meio da rua e estaciono cerca de cinco metros a sua frente...


- A senhora quer ajuda?


- Não, meu vizinho foi até o orelhão para ligar para o Samu me levar até a UPA da Saenz Pena...


Ela me mostra o tal senhor igualmente idoso no orelhão da esquina próxima tentando fazer a ligação...


- Negativo! Eu levo a senhora até a UPA...


- Moço, eu não tenho dinheiro para andar de táxi...


- A senhora sabe rezar?


- Sei!


- Então, fechado! Eu não sei rezar...  Me reza um terço inteiro só por mim que estamos quites...


- Agora?


Ela não entende minha zoação...


Tento levá-la até o carro e não consigo...


Ela me conta que sua coluna travou além de toda sua dificuldade normal de se locomover...


Penso em levá-la no colo...


Não, isto poderia lhe parecer humilhação na frente de alguns que se aglomeraram para ver a movimentação...


Não mereço potencializar seu calvários...

Engraçado, muitos ficaram olhando na calçada do outro lado da rua, só olhando...


Como quem fica a observar alguma obra em via pública quando escavadeiras removem terrenos...


Peço que fique segurando a mesma grade enquanto dou ré no táxi quando o trânsito melhora um pouco...


Minha operação resgate é demorada e dezenas de veículos engarrafam com meu bloqueio na via de mão única onde só passa um carro por vez ao veículos estacionados dos dois lados da rua...


Buzinas em sinfonia e lá atrás alguns palavrões que não consigo enxergar de quem...


Passo a passo conseguimos chegar até o carro...


Após colocá-la no carro tenho dificuldades para colocar suas pernas inertes para dentro...


Muitos percebem e se desculpam pelo buzinaço quando finalmente desatravanco a avenida...


Seguimos para a UPA da Saenz Pena pela Dr. Satamini...


Minha passageira acidental se chama Maria José; mora num quartinho alugado ali na Praça da Bandeira mesmo...


Não tem parentes...


Seus parentes estão todos na Bahia...


- Por quê a senhora não se muda pra lá?

- Gosto do Rio, filho...


Tem poucos amigos, quase nenhum...


O senhor que tentou ligar do orelhão para o Samu é um dos poucos...


Conta que costuma ir ao médico no Hospital do Andaraí e no Rio Comprido; vai de ônibus; caiu duas vezes e agravou seu estado...


Não lembra a última vez que andou de táxi...


- Ih! Fáiz muitos anos, moço...


Fisioterapia até tentou no início quando teve derrame mas desistiu...


Começa a ficar a vontade pra conversar...


De repente, reclama da falta de solidariedade da humanidade:


- Moço, hoje em dia cada um só pensa em si mesmo...


Fico quieto...


Podia lhe dizer que eu estava ali...


Que nada...


Não tenho compromissos com a humanidade, só com minha consciência...

Ela tem razão...


Pede para eu deixá-la no estacionamento das ambulâncias...


Impossível...


Ponho o carro na calçada da Conde de Bonfim em frente a UPA...


Um Guarda Municipal apita repetidas vezes  com o autoritário bloco de multas na mão ao me ver com as quatro rodas sobre o meio fio...


Penso em xingá-lo, mas seria novamente enquadrado por desacato à autoridade; muito embora a razão natural dos seres humanos deveria prevalecer pisoteando estas ridículas demonstrações de pequenos poderes indevidos...


Vivemos num mundo às avessas...


Chamo o GM e mostro a situação da infração inevitável...


Ele fica sem graça mas não se oferece para ajudar...


Deixo minha passageira no carro e entro na UPA...


Está lotada de pessoas na recepção com pequenas senhas de espera...


O ar condicionado não funciona e o calor senegalêz do recinto sem nenhuma janela...


Falo com a recepcionista que tenho uma senhora no carro que apanhei na rua...


- Ok! Mandarei um maqueiro... O carro está próximo?


Minha santa ignorância me induz informar que não necessita de maca alguma, só uma cadeira de rodas...


A recepcionista ri...



Finalmente a senhora é colocada na cadeira de rodas com facilidade pelo tal maqueiro gordo cheio de agilidade e prática...

Me despeço da Dona Maria José...


Ela promete o tal terço completo que eu já nem lembrava mais...


E...


Segura minha mão e...


Beija demoradamente e depois leva até o rosto num afago...


Quando percebi que ela faria isto tentei retirar a mão, ninguém merece este tipo de reverência...


Beijo seu rosto e faço um carinho no seu cabelo de poucos cuidados...


De longe ela me envia seu último acenar de mão e um sorriso de poucos dentes...

De dentro do carro acompanho para ver se o maqueiro a levaria com cuidado para dentro...


Depois de tudo isto se o gordo a derrubasse eu ia lá dava um porrada bem no meio dos cornos dele...





Jorge Schweitzer




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