Cachorros eram criados no quintal lá fora...
Abaixo de um alpendre, sobre acolchoados...
Abaixo de um alpendre, sobre acolchoados...
Entre a sanga e o taquaral...
Nunca vi um deles dentro de casa...
Mesmo assim eles nos amavam...
Amavam mais ainda as rodas dos carros de boi que passavam arranhando o silêncio da estrada de terra...
Tentavam morder a madeira que ringia devagar...
Cachorros vira latas eram melhores caçadores que os perdigueiros...
Reconheciam buraco onde alguma cobra entocada...
Latiam, saltavam, andavam em círculos...
Lebres escapuliam subida acima, mas as capturavam na descida...
As pernas traseiras mais compridas das lebres faziam capotar ladeira abaixo...
Gambás e ouriços era uma batalha que sempre perdiam...
Ficavam semanas com fedor ou espetos impedindo que nos aproximassemos...
Quando mordidos por cobras seus papos ficavam imensos...
Alguma lenda antiga nos dizia que devíamos lhes dar leite rapidamente...
O cão ou a cobra que primeiro bebesse leite se salvaria...
E...
Os cachorros vira latas eram felizes...
Sempre são...
Por alguma razão sempre achei que os vira latas são os melhores companheiros...
Suas festas maiores eram quando alguma mula empacava...
Mula embacada não tem reza que faça sair do lugar...
Fica horas ali, sem explicação...
Cachorros mordem as patas da mula, se esguelam, ameaçam...
Nada...
De repente, a mula simplesmente resolve andar como se nada houvesse...
Os cuscos saem balançando a cauda e pisando duro, como se donos do milagre...
Mas...
Cachorros vira latas também tinham seus momentos de tristeza...
De repente...
Paravam de beber água...
Não mais queriam comer...
Ringo chegou neste estágio...
Era chegada a hora da execução para evitar que contaminasse alguém...
Algum de nós era encarregado de sacrificá-lo...
Um golpe certeiro de pá do lado ouvido...
Sempre temi que este dia me chegasse...
A morte ainda me era algo que continha fantasmas além da saudade...
Todos riram da minha covardia na porta do bolicho emborcando martelos de Praianinha...
Um piá com medo de matar...
Montei no pingo e fui trotando devagar...
O peito esfolado de tristeza...
Ringo acompanhava ofegante desviando das guanxumas do caminho...
O sol varava o entardecer redesenhando nossas sombras do lado esquerdo...
A alma em invernada encarangando os sentidos...
Ninguém mais como testemunha do adeus...
Apeei...
Acomodei Ringo acima do pelego quase nas crinas da montaria...
Enfiei as esporas...
Disparei por entre as coxilhas...
Queria dar o último passeio feliz ao meu amigo vira latas...
Os ventos do descampado zumbiam em Minuano...
Pela primeira vez descobri que cachorros gostam de ventania na cara...
Ringo latia baixinho e balançava as orelhas...
Chegamos...
Desencilhei a pá...
Cavei, cavei, cavei...
Cavei o mais fundo possível para que jamais sequer os ossos do amigo servissem algum dia para carroceiros de ferro velho vendê-lo para fazer sabão...
Cerrei os olhos e imaginei o sacrifício do Ringo como se eu fosse um feitor do Menino do Pastoreio em seu buraco formigueiro...
Ringo não estava mais ali...
Demorei a encontrá-lo...
Achou a beira de um riacho logo a frente para beber água...
Corri na sua direção feito um doido gritando palavrões...
O segurei pelo lombo e o joguei no meio d'água...
Retornou nadando forte...
Saiu da água estremecendo círculos de pingos coloridos no ar brincando de fingir que morderia meu calcanhar...
A cova ficou aberta pra trás...
Ringo voltou pra casa comigo...
E...
A cada vez que ele fingia estar triste eu o colocava na frente dos arrelhos para sair em disparada...
Morreu de velho...
Muito depois de tantos passeios que descobri que ele necessitava para ter mais um dia seguinte...
Jorge Schweitzer
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